Apenas outro filme de monstros e robôs, mas feito por quem entende do assunto
Quando Godzilla surgiu nos cinemas do Japão, em 1954, o país sentia a necessidade de espantar os traumas provocados pelos dramas sofridos durante a 2ª Guerra Mundial. O monstro gigante, portanto, criado pelo mago dos efeitos especiais Eiji Tsuburaya, era a metáfora perfeita do terror causado pelas explosões das bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki. A identificação imediata do público nipônico pelo entretenimento escapista fez surgir um subgênero que se disseminou além do cinema, e se espalhou pelos incontáveis animes e seriados japoneses, introduzindo também a cultura de se criar robôs gigantes para combater as tais ameaças. Essas influências da Terra do Sol Nascente atravessaram o Pacífico e chegaram à Hollywood. Em 1998 foi produzida uma versão ocidental do famoso monstro japonês, mas sem o êxito esperado. Em 2008, o criador da série Lost, J. J. Abrams, produziu o longa Cloverfield – Monstro, em que o tema da destruição de uma metrópole provocada por um monstro gigante foi abordado de forma quase documental, despertando um interesse maior por parte do público. Então vieram os Transformers de Michal Bay, que trouxeram uma nova ótica ao tema, adaptada à era digital. O que faltava ao gênero? A visão de um cineasta ‘autoral’.
- “Tenho interesse por monstros!”, sempre declara o diretor mexicano Guillermo del Toro em suas entrevistas. Sua filmografia não nega. Em Blade II, ele nos deu uma visão ainda mais sombria do Caçador de Vampiros, em seguida ele nos surpreendeu com O Labirinto do Fauno, e ainda nos fez conhecer o improvável herói Hellboy em dois filmes até agora, pois cogita-se o terceiro. Apesar da ideia não ter sido dele, é difícil imaginar cineasta mais adequado para levar às telas este projeto idealizado pelo roteirista Travis Beacham. Del Toro, entusiasmado com o conceito que estava sendo entregue em suas mãos, colaborou para a versão final do roteiro, e o resultado está ao nosso alcance, em Círculo de Fogo, que acaba de chegar aos cinemas.
O longa nos apresenta um planeta Terra em um futuro próximo vivendo em constante angústia diante de um drama com o qual não conseguem lidar (ecos das guerras da vida real?). No Pacífico Sul, em algum ponto da área conhecida como Círculo de Fogo, que tem esse nome devido à uma grande incidência de terremotos e vulcões, uma fenda dimensional foi aberta, por onde atravessa, de tempos em tempos, um monstro gigante que avança, provocando devastações em grande escala em diversas metrópoles à beira-mar por onde passa. Com muito esforço militarista, a ameaça era vencida, mas meses depois outra criatura surgia, e o terror continuava. “- Aquilo não ia parar.”, a narração em off nos alerta ainda no início da projeção. Diante do drama constante, as nações do mundo se unem num esforço inédito e criam, em igual escala de tamanho, robôs gigantes, os “Jaegers” (“caçador” em alemão), para combater os “Kaiju” (“monstro” em japonês).
Seria mais uma história absurda e banal não fosse a personalidade do diretor, que impõe o seu estilo, e consegue adicionar peso dramático à trama, peso esse que faltou em algumas produções acimas citadas. Somos então apresentados à enorme plataforma que abriga os Jaegers, onde o Marechal Stacker Pentecost (Idris Elba), comanda toda a operação, o piloto Raleigh Becket (Charlie Hunnam), e Mako Mori (Rinko Kikuchi, com seus expressivos olhos nipônicos e que foi vista no filme “Babel”, do também mexicano Alejandro González Iñárritu), que poderá vir a ser a parceira de Raleigh no comando de um dos Jaeggers, se conseguir superar um trauma de infância, que envolve um Kaiju. Os Jaegers são sempre operados por dois pilotos, e o processo de condução envolve uma conexão neural entre eles, através da qual ambos podem compartilhar pensamentos, emoções e lembranças um do outro. E as lembranças de Mako nos presenteiam com uma das melhores cenas do filme. Ao vermos o referido flash-back, é difícil não vir à tona à nossa mente aquela foto histórica da menina vietnamita correndo nua pelas ruas querendo desesperadamente fugir das consequências da guerra que estavam por toda parte. Um detalhe chama a atenção, a cor dos sapatinhos da menina, vermelho, em contraste com todo o cinza da destruição ao redor. Recurso semelhante foi utilizado por Steven Spielberg no oscarizado A Lista de Schindler, filmado todo em preto-e-branco, exceto por uma menininha usando um casaco vermelho, representando a inocência, andando desoladamente por entre os campos de concentração nazista.
Mas falando assim, parece até que estamos analisando outro drama de guerra, e não podemos nos esquecer que Círculo de Fogo, antes de mais nada, é entretenimento. Este, portanto, é um bom momento para falar dos alívios cômicos da produção. Charlie Day e Burn Gorman são dois cientistas exageradamente caricatos, (um deles é a cara de J. J. Abrams, coincidência?). Contudo, apesar de eles terem certa relevância na história, é constrangedor ver as tentativas nem sempre bem-sucedidas de se fazer humor diante do clima ácido que o próprio filme insiste em impor, mesmo em se tratando de um ‘blockbuster’. Mas o Hellboy em pessoa, Ron Perlman, em sua quarta colaboração com o diretor, na pele de um mercador de órgãos de Kaijus, surge para descontrair em tom um pouco mais sóbrio e talvez mais apropriado ao filme.
A estética visual de del Toro sempre foi muito apurada. É fácil perceber sua predileção por tons amarelados e esverdeados que permeiam toda a sua obra, e aqui não é diferente. Seja nos cenários subterrâneos, nas redomas de vidro que preservam órgãos dos monstros, nos riscos detalhadamente desenhados em suas carcaças ou na gosma brilhante que sai de seus interiores, seja no metal desgastado dos robôs causado por suas inúmeras batalhas, ou ainda o clima predominantemente escuro, chuvoso e sombrio que envolve toda a projeção, além do fato de grande parte dos combates acontecerem no mar envolto por ondas violentas, não há dúvidas de que estamos assistindo a um filme de Guillermo Del Toro. E nas duas únicas vezes que vemos o dia ensolarado, o contraste provocado por essa mudança de cores evidencia claramente o novo rumo que a trama passou a ter a partir daquele exato momento, comprovando o uso inteligente da fotografia.
Finalmente, as batalhas são compatíveis com o que se esperaria de criaturas e máquinas tão grandiosas, com movimentos lentos, de forma que sentimos o peso físico dos combates, e eles são de encher os olhos. Clichês? Sim, eles também estão no filme, principalmente a partir do terceiro ato. O discurso militarista, a contagem regressiva de uma bomba prestes a ser detonada, o suposto sacrifício de um determinado personagem, a frase: “- Não morra!” dita em um momento em que sabemos que isso NÃO vai acontecer. No entanto, esses elementos são pequenos demais para comprometer a sensação de satisfação que temos quando saímos da sala de projeção após ter presenciado esta epopeia visual e sonora.
Círculo de Fogo é um filme escapista, como foi o Godzilla de 1954. Quase sessenta anos e um oceano de avanços tecnológicos separam um do outro, mas a essência do subgênero ‘filme de monstros’, permanece irretocável. Mesmo nós, ocidentais, continuamos com a necessidade de espantar nossos medos. A diferença é que desta vez tivemos do nosso lado um arquiteto que sabe como ninguém lidar com essas situações. Afinal, em se tratando de monstros, Guillermo del Toro entende.
ROBERTO OLIVEIRA