Cinema de qualidade
por Bruno CarmeloNos grandes festivais de cinema hoje em dia, como Cannes, Veneza e Berlim, são raros os filmes realmente experimentais, ousados, incômodos ou provocadores. As maiores consagrações mundiais do cinema de autor costumam premiar o bom gosto, o esmero estético e narrativo, relegando o trash, o grotesco, o sujo e o precário ao cinema de gênero. Em Cannes, onde a crítica ainda se choca com cenas de sexo e violência, uma obra como Era Uma Vez na Anatólia aparece como o grau máximo de experimentação dentro do cinema autoral. Como já havia acontecido com Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, o filme turco não subverte a cartilha do traço pessoal, pelo contrário, ele explora seu mecanismo ao limite da caricatura.
Os limites, no caso, são dados pela aridez narrativa e pelo tempo diluído. A procura por um cadáver durante uma noite ocupa 90 minutos de narrativa, e as conclusões dessa busca se desenvolvem por mais 70 minutos. Em planos abertos, o diretor acompanha a trajetória inteira dos carros pelas estradas, do trigo balançando ao vento, das policiais acompanhando os suspeitos pelas planícies. Em planos fechados, dentro dos carros, o cineasta mostra os rostos, escondidos pelas sombras, enquanto os homens fumam e emitem raras opiniões sobre a condição humana. O ritmo é tão lento e contemplativo que pode representar uma experiência enriquecedora para alguns espectadores, ou uma tortura para outros. Não surpreende que a produção tenha sido recebida com uma mistura de elogios apaixonados e risos sarcásticos.
Este mesmo desconforto ocorre com a estética adotada pelo diretor. Nuri Bilge Ceylan é conhecido pelos planos rebuscados, com fotografias saturadas, artificiais. Desta vez, ele acrescenta os jogos com planos abertos e profundidade de campo. Sua ampla paisagem é fotografada como um quadro impressionista, pontuada por pequenos corpos humanos se deslocando no espaço, criando novas imagens, novos focos de atenção.
Com o passar do tempo, o exercício estético acaba se tornando o verdadeiro protagonista de Era Uma Vez na Anatólia. O prazer do enquadramento, do espaço, da fotografia, aproxima-se da tão temida quanto adorada “arte pela arte”, a fruição estética em si. A obra atinge o sonho do cinema romântico autoral: ela se transforma em um objeto artístico cujo principal interesse é o próprio autor. O cineasta conseguiu fagocitar sua filmografia, existindo não por causa dela, mas apesar dela.
Com todas essas qualidades e defeitos, Era Uma Vez na Anatólia é capaz de provocar diversas reações no espectador, menos a indiferença. Este filme insuportavelmente belo, angustiantemente filosófico e reflexivo torna-se uma espécie de ícone do culto artístico ao criador, representando seu exemplo mais didático, e também apontando para seu eventual limite. Para o bem ou para o mal, o filme constitui um marco da noção contemporânea de cinema de qualidade.