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    Era uma Vez na Anatólia
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Era uma Vez na Anatólia

    Cinema de qualidade

    por Bruno Carmelo

    Nos grandes festivais de cinema hoje em dia, como Cannes, Veneza e Berlim, são raros os filmes realmente experimentais, ousados, incômodos ou provocadores. As maiores consagrações mundiais do cinema de autor costumam premiar o bom gosto, o esmero estético e narrativo, relegando o trash, o grotesco, o sujo e o precário ao cinema de gênero. Em Cannes, onde a crítica ainda se choca com cenas de sexo e violência, uma obra como Era Uma Vez na Anatólia aparece como o grau máximo de experimentação dentro do cinema autoral. Como já havia acontecido com Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, o filme turco não subverte a cartilha do traço pessoal, pelo contrário, ele explora seu mecanismo ao limite da caricatura.

    Os limites, no caso, são dados pela aridez narrativa e pelo tempo diluído. A procura por um cadáver durante uma noite ocupa 90 minutos de narrativa, e as conclusões dessa busca se desenvolvem por mais 70 minutos. Em planos abertos, o diretor acompanha a trajetória inteira dos carros pelas estradas, do trigo balançando ao vento, das policiais acompanhando os suspeitos pelas planícies. Em planos fechados, dentro dos carros, o cineasta mostra os rostos, escondidos pelas sombras, enquanto os homens fumam e emitem raras opiniões sobre a condição humana. O ritmo é tão lento e contemplativo que pode representar uma experiência enriquecedora para alguns espectadores, ou uma tortura para outros. Não surpreende que a produção tenha sido recebida com uma mistura de elogios apaixonados e risos sarcásticos.

    Este mesmo desconforto ocorre com a estética adotada pelo diretor. Nuri Bilge Ceylan é conhecido pelos planos rebuscados, com fotografias saturadas, artificiais. Desta vez, ele acrescenta os jogos com planos abertos e profundidade de campo. Sua ampla paisagem é fotografada como um quadro impressionista, pontuada por pequenos corpos humanos se deslocando no espaço, criando novas imagens, novos focos de atenção.

    Com o passar do tempo, o exercício estético acaba se tornando o verdadeiro protagonista de Era Uma Vez na Anatólia. O prazer do enquadramento, do espaço, da fotografia, aproxima-se da tão temida quanto adorada “arte pela arte”, a fruição estética em si. A obra atinge o sonho do cinema romântico autoral: ela se transforma em um objeto artístico cujo principal interesse é o próprio autor. O cineasta conseguiu fagocitar sua filmografia, existindo não por causa dela, mas apesar dela.

    Com todas essas qualidades e defeitos, Era Uma Vez na Anatólia é capaz de provocar diversas reações no espectador, menos a indiferença. Este filme insuportavelmente belo, angustiantemente filosófico e reflexivo torna-se uma espécie de ícone do culto artístico ao criador, representando seu exemplo mais didático, e também apontando para seu eventual limite. Para o bem ou para o mal, o filme constitui um marco da noção contemporânea de cinema de qualidade.

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