Quem vive de passado (não) é museu
Há um bom tempo, já fantasiava um programa assim: comprar umas cervejas, uns petiscos, me esparramar no sofá e assistir a um filme em casa. Relaxar depois de um dia longo, curtir preguiça e aquela solidão momentânea, sabe? Dentre muitas opções no armário da sala, escolhi “Nebraska”, filme do diretor Alexander Payne e que teve seis indicações ao Oscar deste ano. Acabei acertando o alvo em cheio, pois o danado do filme me fez pensar na vida. Foi o crédito subir, o freezer esvaziar e a cevada bater para a vontade de escrever aparecer.
Numa acertada produção em preto e branco, o longa trata da velhice e dos cuidados que se deve ter com ela de uma forma bem precisa e delicada. Após receber uma propaganda pelo correio, o velhinho carrancudo Woody (Bruce Dern) acredita ter US$ 1 milhão a receber. Para isso, teria que viajar para a cidade de Lincoln, no Estado de Nebraska. Sem condições físicas e com sérios problemas de saúde e alcoolismo, ele incomoda a esposa (June Squibb) com a ideia maluca e acaba convencendo o filho David (Will Forte) a acompanhá-lo. O tom melancólico é ainda mais fascinante quando percebemos que David, ao seguir viagem com o pai, não está fazendo aquilo por acreditar naquele bilhete premiado, mas na pura vontade de passar mais tempo com ele.
Sobrevivendo a alguns percalços, eles decidem passar o fim de semana na casa de parentes, na cidade natal de Woody, no meio do caminho. Ele acaba contando para a família e os antigos amigos que agora é um milionário, e aquilo vira um prato cheio para os interesseiros surgirem como insaciáveis cachorros em busca da fêmea no cio. Cada passo de Woody e David na cidade é uma recordação exposta. Velhos desafetos, antigos amores e grandes amizades voltam à tona numa nostálgica obra genealógica. Às vezes, por causa da memória fraca, Woody só se recordava do local, mas se perdia nas lembranças, confundia os acontecimentos, errava os protagonistas da história. Por mais que ele não tivesse certeza daquilo que viveu no passado, revisitar aquela cidade o fez ser maior, mais vivo, mais homem. É nesse ponto que você percebe que a vida da gente é construída por meio de lembranças. De nada adianta a busca por um dinheirão se sua mente não carrega o resumo da reminiscência mais agradável, como também daquelas memórias mais sofridas. E isso nem é culpa do Alzheimer. Certa vez, Dostoiévski escreveu: “Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio”.
Se eu, com 34 anos, já preenchi um livro de histórias para viajar e contar, meus pais têm best-sellers de mil páginas, e vovô Tonico e vovó Tercília escreveram na lápide uma Bíblia sagrada de recordações e encantos desta vida. Como já (não) diziam aqueles velhos ditados, as águas passadas (não) movem moinhos, quem vive de passado (não) é museu e a carruagem do passado (não) nos leva longe. Leva sim. Mas é como Mário de Andrade, que foi enfático ao dizer: “O passado é lição para refletir, não para repetir”. O seu livro de histórias está sempre ao seu alcance, basta folheá-lo um pouquinho por dia para perceber que dos rascunhos que a vida nos faz rabiscar se tiram poemas seculares