Batalha ideológica
por Francisco RussoLer as histórias de Asterix – e todos seus derivados, como filmes live action e de animação – é a chance não apenas de se divertir, mas também de conhecer um pouquinho mais da história da civilização. Afinal de contas, os personagens criados pela dupla Albert Uderzo e René Goscinny são reflexo direto do imperialismo econômico e cultural dos Estados Unidos perante o mundo, travestido através do conflito existente entre o Império Romano e a aldeia dos irredutíveis gauleses – leia-se alter ego da França. A luta pela liberdade é também um grito desesperado pela manutenção de seus ideais e crenças, sejam eles quais forem, perante um oponente bem mais poderoso e influente. Se em grande parte das histórias publicadas já é possível notar este subtexto, em Asterix e o Domínio dos Deuses ele fica ainda mais incisivo do que o habitual – e é este um dos motivos que o tornam tão saboroso.
Tudo porque, desta vez, o imperador Júlio César decide usar a seu favor um plano ardiloso e ambicioso envolvendo as tentações do capitalismo. Ou seja, ao invés de usar a força bruta para invadir o local e expulsar os gauleses – o que sempre dá errado, graças à famosa poção mágica do druida Panoramix -, o plano desta vez é construir ao lado da aldeia um condomínio luxuoso, com todo o requinte da vida moderna nos anos 50 A.C. É a deixa perfeita para que Uderzo e Goscinny liberem com habilidade diversas cutucadas envolvendo ambição, qualidade de vida, exploração e especulação imobiliária.
Um exemplo é o modo como são tratados os escravos, que, por mais que consigam a alforria graças aos trabalhos executados na construção do Domínio dos Deuses, permanecem presos devido às amarras invisíveis causadas pelas minúcias do capitalismo. O mesmo vale para o mercado de peixe que surge na aldeia gaulesa, graças à presença cada vez maior de “turistas” romanos. Em decorrência da maior demanda, e da percepção de que os preços cobrados são menores que os de Roma, nasce uma crescente – e típica – concorrência entre os gauleses movida unicamente pela ambição.
Toda esta abordagem dá à história um tom mais profundo que o habitual, o que não significa que o longa perca em agilidade e comédia. As habituais brigas entre os habitantes da aldeia e o lado infantilizado de Obelix são bem explorados, assim como os vários encontros – ou seriam confrontos? – entre gauleses e romanos, tudo isto em uma animação computadorizada de qualidade. Bastante envolvente, Asterix e o Domínio dos Deuses é um belo exemplo de que é possível fazer uma animação inteligente e divertida que, ainda por cima, seja bastante fiel ao espírito do material original. Uderzo, Goscinny e o público agradecem.
Filme visto no 13º Festival Internacional de Cinema Infantil, em setembro de 2015.