Filme Básico: Saneamento
por Roberto CunhaAo brincar com o título do filme de Jorge Furtado já temos uma dica de que tem algo de diferente no ar, ou melhor, na tela. E a confirmação é a voz em off de Fernanda Torres, invadindo a sala escura, sem o filme ter começado, com um texto brincalhão gravado por cima das logomarcas dos apoiadores na tela. Fosse menor, teria sido melhor ainda. O filme começa com os principais participantes - e suas características - apresentados de uma só vez numa peculiar reunião de uma pequena vila italiana, no sul do Brasil, para decidir o destino do esgoto da cidade. Bizarro? Oportuno.
Em contato com o governo local, Marina (Fernanda Torres) e Joaquim (Wagner Moura) descobrem que a única maneira de conseguir verba para a tal obra seria a realização de um filme. Essa sacada de fazer um filme dentro do filme foi muito boa. Mostrou - com muito humor - a verdadeira via-crucis que um produtor precisa enfrentar desde a definição do figurino até o uso do merchandising. Diversão garantida. Foi possível criticar a nossa ignorância, a safadeza da classe política e dos empreiteiros. E sobrou também para o pessoal que faz cinema para poucos e detona muitos que não seguem esta linha. Quer frase mais emblemática para esse grupo do que "Vamos ganhar prêmios!"? Engraçada também as explicações de Marina sobre o uso do "obrigada" no lugar do "obrigado" dito por tantas famosas (?). Isso é Brasil.
Torres e Moura mostraram boa química em cena. A dúvida sobre o que seria uma produção de ficção rende boas risadas. Ficou incoerente apenas o fato de eles saberem o que era mutação genética. Aliás, o roteiro explorou bem esta questão do brasileiro ignorante, mas espirituoso. Boa fotografia, luz e trilha sonora toda em italiano com direito ao clássico "Io Che Amo Solo Te" em um belo momento do roteiro, mas gratuito porque Joaquim aparece com uma moto rara para salvar uma situação financeira. Haja deus ex machina.
Destaque para o duelo sonoro entre a Cherokee do empreiteiro (Tonico Pereira) e a Rural do ex-prefeito (Paulo José). Foi sublime e tocante, com trocadilho. As divergências entre os dois espelham os valores e as relações de amor e ódio entre políticos e empreiteiros. Camila Pitanga está bem no papel de Cilene e de Cilene Seagal. Impagável a seqüência dos peões contracenando com ela na floresta. O detalhe fica para a cena que o monstro (Moura) machuca a boca dela e a cena passou na edição. E, como nem tudo é perfeito, não deu para entender uma criança com um isqueiro Zippo no bolso para acender o cigarro de Joaquim. Fim do longa e fica aquela certeza de que é possível fazer filme inteligente para muitos sem ser comercial. Mesmo que seja um "filme do filme". Saneamento para o cinema arte!