Polanski tem um senso de crueldade raro, encontrado em um grupo seleto de cineastas. Ele sabe colocar o dedo bem fundo nas mazelas humanas , fazendo jorrar o pus de nossas hipocrisias , perversões , loucuras e dicotomias de todas as naturezas. "Deus da carnificina" como qualquer comédia inteligente tem um subtexto muito triste e cáustico: faz parte do DNA humano massacrar uns aos outros . Somos maus e por isso precisamos de tantas regras de boa convivência ; para não pularmos na jugular de ninguém em nome das nossas ideias de paz. Sobre o estilo do filme , Polanski já provou em outras obras que domina muito bem a linguagem cinematográfica e se em "Deus da carnificina" optou por um estilo teatral é porque talvez este fosse o único jeito ou o mais eficiente para contar a história que ele se propôs a contar. Os personagens encerrados no apartamento proporcionam o clima claustrofóbico necessário ao desenrolar da discussão infrutífera , regada a insultos tão ácidos quanto o vômito da personagem de Kate Winslet. E por falar em teatro, o filme conta com quatro atores no mínimo excelentes que fazem o texto fluir em um crescente delicioso, entre a ironia sutil até a histeria patética. O filme começa intencionalmente e tensamente tranquilo ( me parece a parte mais angustiante de todo o filme) ; com uma raiva contida que nos remete a Buñuel e ao "Anjo exterminador". Os personagens não conseguem se retirar do apartamento nem se livrar das máscaras sociais. A mãe do agressor finge se importar com a atitude do filho e o pai nem finge pois ser cínico já é o seu papel social. O casal do agredido também se contém, mas desde a primeira cena é possível perceber a tensão que domina a personagem de Jodie Foster. A casa é cheia de detalhes que nos remetem ao mundo encantado da classe média. Os livros de arte de Penelope e o celular de Alan fazem uma espécie de contraponto icônico de duas realidades que convivem diariamente: de um lado , o apreço por uma cultura formalista e bem superficial. Do outro, o gosto descarado pelo ganhar dinheiro a qualquer custo. A primeira tem um véu de dignidade. A segunda é niilista mesmo. Porém, no final das contas , tudo se mostra sem saída , pelo menos num plano humano. O hamster abandonado pelo personagem de John C Reilly também me remeteu a Buñuel e às agressões que o ser humano inflige aos animais e a todos que são mais frágeis. Merece destaque as tulipas amarelas que a personagem de Jodie Foster compra para receber as "visitas"; um belo índice da artificialização das relações sociais e humanas que tenta nos redimir e nos definir por meio de pequenos rituais e ostentações. Os diálogos são um show à parte; ao lado dos atores são o ponto alto do filme, que nos surra com um jogo de palavras igualmente divertido e irritante. O que mais nos irrita no filme e na vida real é o mais divertido, como por exemplo, o celular de Alan que não para de tocar ; a conversa que vai de ponto algum a nenhum lugar ; a raiva contida de Penelope; o cinismo de Alan; a falsa delicadeza de Nancy e a falta de fibra de Michael que só consegue agredir à sua esposa. Ninguém é santo; ninguém merece aplausos. Até mesmo a culpabilidade integral do menino agressor é questionável. Embora nada justifique um ato de brutalidade , não se sabe ao certo o que gerou o seu gesto. É realmente uma barbárie em que ninguém está totalmente inocente , nem mesmo Penelope , que acredita sinceramente estar bem intencionada; outro elemento que merece destaque. Penelope se deixa levar por valores superficiais , mas acredita neles , não os simula, e está aí, talvez , o grande drama do filme: como podemos enganar a nós mesmos. Realista , cruel e extremamente inteligente!