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    História Mundana
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    História Mundana

    Corpo e matéria

    por Bruno Carmelo

    À primeira vista, o drama tailandês segue a cartilha do realismo extremo, que pretende intervir o mínimo possível na percepção do espectador. A história do jovem Ake (Phakpoom Surapongsanuruk), que se tornou paraplégico após um acidente, e do enfermeiro Pun (Arkaney Cherkham) é construída com luzes naturais, câmeras na mão acompanhando os personagens, planos contemplativos, ausência de trilha sonora ou de qualquer forma de sentimentalidade.

    Pelo contrário, História Mundana desenvolve-se em tom surpreendentemente frio. Os personagens, apáticos em virtude do trauma, não se expressam para além do silêncio incômodo. A diretora Anocha Suwichakornpong filma os corpos com uma frontalidade próxima do documental nas cenas em que Ake urina sobre si mesmo ou tenta, em vão, se masturbar durante o banho. Enquanto isso, Pun quase dorme diante do paciente e não esconde a sensação de não-pertencimento àquela família rica, sem afetos: “As pessoas são vazias de sentimento aqui”, ele reclama a alguém por telefone.

    A montagem, entretanto, sugere ruídos no naturalismo. A história vai e volta no tempo, não para revelar algo escondido do espectador, apenas para trazer uma nova camada de cenas já vistas, ou seja, preencher as elipses. O efeito torna-se no mínimo curioso: vemos Ake e Pun voltando para o quarto molhados, algumas cenas depois eles se secam, mais algumas cenas e a dupla decide ir para o jardim sob a chuva. O retorno de ambos, encharcados, era suficiente para a compreensão da cena, porém Anocha permite que a história se complete por outros pontos de vista, outros ângulos. Talvez seja uma maneira de dizer que todo fato possui várias interpretações, com detalhes escondidos.

    O filme torna-se cada vez mais interessante à medida que expande o drama do garoto acidentado para uma reflexão global sobre a vida e a morte, e sobre o papel do ser humano no universo. Partindo da metáfora óbvia, porém muito bem desenvolvida, das estrelas cujo brilho persiste após a sua morte, História Mundana ousa incluir animações aparentemente desconexas da trama para estabelecerem uma conexão entre o individual e o coletivo. O roteiro desprende-se da obrigação de fornecer respostas – sobre as causas do acidente, sobre a vida de Pun fora do trabalho – para imaginar a morte dos planetas e o nascimento dos seres humanos como um círculo inevitável de vida e morte.

    O projeto se encerra como obra ao mesmo tempo poética e niilista. A cineasta enxerga toda forma de vida como parte de um ciclo (vide as subtramas envolvendo tartarugas e pássaros) no qual a permanência é temporária, e a presença de cada ser vivo revela-se ínfima diante do sistema mais amplo da natureza. A relação com a transcendência, normalmente associada à figura divina, transforma-se num diálogo carinhoso com as naturezas humana e terrestre.

    Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.

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