“As quatro voltas” é, na sala de cinema, o que certos aspectos da vida são, para os mais afoitos e dados ao movimento e ao lado solar das coisas: um teste de resistência. Não é o tipo de filme que fisga pela trama, pela ação, pelos diálogo (aliás inexistentes!). Lento, arrastado, monótono, povoado por gente comum e cabras, fotografia intencionalmente escura e mal definida em diversas passagens, expressa com alta fidelidade a mensagem que, provavelmente, o diretor Michelangelo Frammartino desejou com ele transmitir: não só a vida tende à morte, como também na própria vida se instala, no quotidiano, uma zona morta, tingida de solidão, isolamento, pobreza (material e de espírito) e tédio.
O cenário é um vilarejo calabrês onde se produz carvão e criam-se cabras, artesanalmente, girando a vida social em torno das festas religiosas. Os personagens principais são um velho pastor, um cabritinho, uma árvore gigante e cinzas, protagonizando o ciclo da vida: nascer, viver e ao pó retornar. O enredo é uma sequência de pequenas histórias contadas fundamentalmente por meio de imagens, densas em reflexão sobre a vida, a morte, a solidão, o tédio, o peso do quotidiano num ambiente desprovido de atrativos, onde se ganha e se leva a vida a duras penas. Poderia referir-se apenas ao subdesenvolvimento e miséria da mais pobre das regiões italianas, mas não, avança, ganhando universalidade ao iluminar uma dimensão dolorosa da existência, presente em cada um, em todo lugar.
Evitar a Calábria como lugar para viver, ou abandonar a sala de cinema onde “As quatro voltas” exploram em profundidade as mazelas ali elevadas à enésima potência, são atitudes que podem afastar as sensações indesejáveis que o filme e a região amplificam, mas extirpar essas sensações da existência não é possível, sendo arte maior do que a sétima saber conviver com elas, sem sucumbir.
Apesar de toda a tristeza que o marca, o tempo todo, “As quatro voltas” é poético, na fotografia e no roteiro. Cada cena prima por ir ao fundo daquilo que intenciona transmitir, como se fosse uma frase filosófica dita em tom de poesia, por alguém com grande domínio da forma e do conteúdo. Seria possível enumerar uma dezena delas, mas basta uma para ilustrar: a do cabritinho recém-nascido que, desgarrado da chibarrada, berra o tempo todo vagando pela montanha e, cansado, acomoda-se sob uma grande árvore, no fim da tarde, começo da noite, não sendo mostrado (certamente morto) quando a cena se abre revelando a montanha toda nevada, pouco antes de as câmera se concentrar na derrubada da árvore, que vai ser transformada no pau de sebo de malhar judas numa festa do vilarejo.
Quebrar a rotina, romper o cerco erguido pelo tédio! – dá vontade de gritar. O grito é sufocado por uma sequência envolvendo o velho pastor e suas poucas cabras. Se um elo da rotina se quebra, o caos se instala. Tendo morrido o solitário pastor, numa manhã em que um caminhãozinho, descendo a ladeira desgovernado, quebra a cerca que retém sua chibarrada, as cabras se espelham pelas casas da cidade, vazia porque todos tinham ido à procissão. Ao caos da cidade invadida por cabras se junta a desordem do casebre do pastor, cuja cozinha é invadida por caracóis, libertados de uma panela derrubada pela cabra que para lá se dirige e sobe na mesa, fuça nas coisas. Eis que o velhinho, tão insignificante, aparentemente inútil – um graveto carunchado – era um dos insignificantes sustentáculos daquela rotina que a todos rapta para se manter. Rompida a rotina, é para logo ser recompor, pela ação de um novo pastor...