O início da década de 1960 foi muito agitado. Em 1961, apenas alguns meses após a posse de John Kennedy como presidente dos EUA, fracassou a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, por forças de oposição (com apoio estadunidense) ao governo comunista da ilha caribenha comandado por Fidel Castro, que rechaçou prontamente essa agressão. O Muro de Berlim foi construído pela então Alemanha Oriental nesse mesmo ano.
No ano seguinte, a crise dos mísseis instalados em território cubano pela União Soviética (URSS), quase lançou o mundo em sua primeira – e, provavelmente, única – guerra nuclear. O conflito no Vietnã corria desde 1955 e os EUA davam apoio financeiro e logístico ao governo do Vietnã do Sul (os estadunidenses entrariam nesse conflito, oficialmente, somente em 1965). Mas, Kennedy já tinha a intenção de retirar o seu país dessa enrascada. Em 23 de dezembro de 1963, John Kennedy foi assassinado por razões obscuras e, ainda hoje, mal explicadas. Em resumo, a Guerra Fria estava em seu auge.
É neste cenário mundial que ocorre a trama de O Agente da U.N.C.L.E. Em 1963, o agente Napoleon Solo (o britânico Henry Cavill, de O Homem de Aço) da CIA, o serviço secreto dos EUA, é enviado a Berlim Oriental para resgatar Gabriella “Gaby” Teller (a sueca Alicia Vikander, de Ex_Machina), filha de um cientista alemão que passou para o lado dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Eles são interceptados pelo agente Ilya Kuryakin (o estadunidense Armie Hammer, de O Cavaleiro Solitário), da KGB, o serviço secreto da URSS, mas conseguem escapar.
O chefe de Solo, Saunders (o inglês Jared Harris, de O Curioso Caso de Benjamim Button) diz a ele que o tio de Gaby, Rudi (o alemão Sylvester Groth, de Bastardos Inglórios), trabalha para uma companhia naval italiana que pertence a Alexander Vinciguerra (o italiano Luca Calvani, de Quando em Roma) e sua esposa, Victoria (a australiana Elizabeth Debicki, de O Grande Gatsby), e que o casal mantém o pai da moça prisioneiro para que este construa para eles uma bomba atômica. Saunders manda Solo viajar para Roma para resgatar o cientista e revela que terá a companhia de Gaby e, para a surpresa de Napoleon, de Kuryakin, com quem irá trabalhar em conjunto, apesar de suas diferenças. Durante a missão, são monitorados pelo chefe do serviço secreto britânico, Waverly (o também inglês Hugh Grant, de Quatro Casamentos e Um Funeral).
O filme é inspirado pela série de TV de mesmo nome exibido entre 1964 e 1968 e tinha em seu elenco o estadunidense Robert Vaughn (de Sete Homens e Um Destino), como Napoleon Solo; o escocês David McCallum (de Freud Além da Alma), como Ilya Kuryakin; e o inglês Leo G. Carroll (de Pacto Sinistro), como Waverly. Era um produto típico daquela época, na qual romances e filmes de espionagem estavam totalmente na moda. Para se ter uma ideia, o seriado teve a consultoria criativa de ninguém menos que o escritor Ian Fleming, autor de James Bond. Mas a original ideia de uma organização secreta na qual um agente estadunidense trabalha em conjunto com um soviético foi do roteirista Sam Rolfe (de Jornada nas Estrelas – A Nova Geração).
A sigla U.N.C.L.E., em inglês, significa United Network Command for Law and Enforcement (Comando de Rede Unida para a Lei e sua Aplicação, em tradução livre). No filme de 2015, substituíram a palavra network (rede) por nations (nações). Seu maior inimigo é a organização criminosa T.H.R.U.S.H., que significa Technological Hierarchy for the Removal of the Undesirables and the Subjulgation of Humakind (Hierarquia Tecnológica para a Remoção de Indesejáveis e a Subjulgação da Humanidade).
Em muitos aspectos, Napoleon Solo se parece com James Bond: ele é sofisticado, charmoso, mulherengo, gosta de se vestir na maior “estica” e é bem humorado. A princípio, ele deveria ser o personagem principal, mas o inesperado sucesso de Ilya Kuryakin com os fãs – em especial as mulheres - fez com que este acabasse dividindo os holofotes com Solo. O agente russo é uma antítese do estadunidense: é sério, não brinca em serviço, é um intelectual reservado, não esconde sua simpatia pelo Socialismo, se veste com discrição e não fica correndo atrás de mulheres. Na verdade, elas é que correm atrás dele e Kuryakin tem uma relação muito pragmática tanto com as mocinhas quanto com as bandidas – o famoso senso prático soviético...
A série misturava com muito equilíbrio ação e humor e, em plena tensão da guerra fria, transmitia uma positiva mensagem de cooperação, ajuda mútua e amizade entre povos antagônicos. A produção não era das mais caras, mas convencia e a dupla Vaughn-McCallum tinha uma química e um charme que funcionavam com perfeição e garantiam o sucesso. Porém, devido ao ibope de séries como Batman e Agente 86, que tinham um humor bem escrachado, os produtores decidiram seguir essa linha, que não agradou aos fãs, fez a audiência cair e decretou o fim do seriado.
Em 1983, foi feito um especial para a TV chamado A Volta do Agente da U.N.C.L.E., no qual a dupla de espiões retorna após uma “aposentadoria” de 15 anos para a realidade da década de 1980. Esse especial ressuscitou com sucesso a fórmula do seriado original e tinha no elenco o estadunidense Anthony Zerbe (da trilogia Matrix), como o chefe da T.H.R.U.S.H., e uma divertida participação especial do australiano George Lazenby (de 007 a Serviço Secreto de Sua Majestade) como um agente chamado J. B. (deu para sacar, não é?).
Ao contrário desse especial de TV, o diretor Guy Ritchie (da franquia Sherlock Holmes) decidiu manter a história na década de 1960 ao invés de trazê-la para a época atual, no que fez muito bem, pois é o tipo de trama que funciona melhor nesse período de tempo e o filme se inicia com um resumo dos acontecimentos da época para ajudar, principalmente, ao público mais jovem a se situar nesse espaço-tempo.
Ritchie tem uma direção firme, cheia de estilo e muito ágil, que se reflete nas cenas de ação e humor, assim como na direção de atores, o que faz dele um dos principais cineastas da atualidade. O roteiro, escrito por Ritchie em conjunto com o produtor Lionel Wigram (de O Sétimo Filho), mantém com competência o equilíbrio de ação e humor do seriado original, tem boa dose de suspense e explora bem as diferenças entres os agentes secretos.
A trilha sonora de Daniel Pemberton (de O Conselheiro do Crime) dá a sonoridade retrô ao filme e é complementada por canções de estrelas daquele tempo tais como Nina Simone e – vejam só – o nosso querido Tom Zé. A fotografia de John Mathieson (de X-Men: Primeira Classe) é primorosa tanto ao mostrar as belas paisagens de Londres, Berlim, Roma e litoral da Itália como ao dar o clima de que alguém está nos espionando...
A reprodução de época é simplesmente perfeita, no que foi ajudada pelas locações europeias. O público de nossa era digital e informatizada vai se divertir ao ver aparelhos hoje considerados “low-tech”, mas que eram “high-tech” naquele tempo. O figurino também reproduz com perfeição a moda dos anos 60 e não estranhem se for indicado ao Oscar da Categoria.
A dupla de heróis foi bem escolhida. O grandalhão Armie Hammer aproveita a oportunidade para recuperar-se do decepcionante O Cavaleiro Solitário e está bem como o principal agente da KGB. Ainda que menos político que a versão de McCallum, o seu Ilya, sempre que pode, exalta as virtudes da URSS, mas também reconhece os seus defeitos. O que difere o novo Ilya Kuryakin do antigo é o seu nervosismo, que beira a psicose. Embora às vezes se aborrecesse com as piadinhas de Solo, o Kuryakin antigo era bem mais frio. Essa foi a chamada licença poética a qual o roteiristas tiveram a liberdade de tomar com o personagem e que Hammer interpreta bem.
Essa mesma licença poética também foi usada com Napoleon Solo. Ele continua com as suas características originais, mas foi acrescentado um passado militar e de malandragem e vigarice que o antigo Napoleon não tinha (ele era de família rica e aristocrática). Entretanto, a perfomance de Henry Cavill – um astro que cresce a cada filme - faz dele um bom Napoleon Solo no que é ajudado por um toque de classe e humor britânicos e uma atitude, por vezes, blasé – para a irritação de Kuryakin - que lhe dá um ar até mais sofisticado que a versão de Vaughn.
A atuação de Alicia Vikander também está boa. O seu papel como Gaby não é apenas de uma garota bonita e sensual, mas de alguém de muita personalidade. Numa época na qual o feminismo começava a aparecer, ela não se impressiona com os espiões machões, os encara sem medo e não deixa de surpreender ao fazer jogo duplo com eles. Porém, embora seja feminista, também é feminina e não se constrange em cair nos braços do sério e tímido agente soviético.
Todo filme de espionagem que se preze precisa de um vilão. Neste caso, é uma vilã e não poderiam ter feito uma escolha melhor que Elizabeth Debicki. A sua personagem, Victória, é uma “femme fatale” como há muito tempo não se via: bonita, charmosa, inteligente, sexy, manipuladora e má! Por várias vezes ela chega a roubar as cenas dos protagonistas principais e faz o tipo de vilã que o público curte torcer contra.
Os principais coadjuvantes não comprometem. Jared Harris faz o típico chefe que pega no pé de seu agente e Hugh Grant (que está com uma aparência um pouco abatida) tem uma participação pequena, mas importante, como o irônico chefe do serviço secreto britânico. Já o coadjuvante Luca Calvani tem muito pouco a fazer embora seu personagem, Alexander, seja o marido de Victoria.
Este é mais uma produção na qual o cinema homenageia a televisão como acontece em Entourage – Fama e Amizade (veja aqui). Uma falha que vejo no filme é apresentar o significado da sigla U.N.C.L.E. apenas ao se passarem os créditos finais, quando muitas pessoas já estão indo embora. O que pode desapontar os fãs do seriado é ver que os dois agentes só entrarão para a agência – sob o comando de Waverly – e enfrentarão a T.H.R.U.S.H. apenas em uma possível continuação, o que não é impossível de acontecer visto que este é um filme de qualidade.
E por ser justamente um filme de qualidade em um ano no qual os filmes de espiões tais como Kingsman: Serviço Secreto e Missão: Impossível – Nação Secreta (veja aqui) estão se destacando, o público pode ir às salas de exibições sem receio e com a certeza de se divertir bastante com um filme que é candidato a sucesso-surpresa.