Toda vez que alguém comenta sobre o filme Perfume de Mulher vem na lembrança das pessoas o clássico moderno estrelado por Al Pacino, Scent of a Woman (Perfume de Mulher - 1992), que finalmente o consagrou com o Oscar de Melhor Ator. O que poucos sabem é que essa obra cinematográfica é um remake de um longa-metragem italiano, Profumo di Donna - 1974, adaptado do romance literário Il Buio e Il Miele - 1969, do autor Giovanni Arpino, e dirigido por Dino Risi (conhecido por Una Vita Difficile - Uma Vida Difícil - 1961, II Sorpasso - Aquele que Sabe Viver - 1962 e I Mostri - Os Monstros - 1963).
Perfume de Mulher conta a história do capitão Fausto Consolo (Vittorio Gassman, conhecido por I Soliti Ignoti - Os Eternos Desconhecidos - 1958, La Grande Guerra - A Grande Guerra - 1959, II Sorpasso - Aquele que Sabe Viver - 1962, L'armata Brancaleone - O Incrível Exército Brancaleone - 1966 e C'eravamo Tanto Amati - Nós que nos Amávamos Tanto - 1974), um militar reformado que vive sozinho com uma velha tia na cidade de Turim e decide realizar uma viagem de trem de 7 dias por Gênova, Roma e Nápoles. Por ter ficado cego em um acidente em uma operação militar, o exército designou um jovem soldado para acompanhá-lo no passeio, Giovanni Bertazzi (Alessandro Momo, ator de Malizia - Malícia - 1973), a quem Fausto apelida de Ciccio. Regradas a mulheres e bebidas, suas aventuras parecem inocentes e divertidas, mas à medida que a viagem transcorre, um propósito obscuro é revelado.
A atuação de Gassman é um dos grandes destaques do filme, recebendo inclusive a premiação de Melhor Ator em Cannes. O ator consegue transmitir de forma impecável todo o conflito interno do personagem principal: Fausto é um homem cego e maneta da mão esquerda, melancólico, cínico, exaurido da sua vida rotineira, comportando-se de maneira cruel e arrogante, apesar de ter adquirido notável facilidade de movimento e noção precisa da localização dos objetos. Irônico e desinibido, ele age de forma natural, como se pudesse ver, e se aproveita de sua condição privilegiada (cegueira) para zombar da dissimulação e do fingimento da sociedade, com desdém pelas convenções de compaixão das quais também é refém. Esse caráter ambíguo, de admiração e repulsa por um personagem de uma grandiosidade que por vezes nos faz até esquecer sua limitação física, mas que também é desagradável, amargo e sarcástico, reflete sua personalidade conflituosa, mas ao mesmo tempo carismática. Mulherengo e bebedor, a cegueira acentuou-lhe os outros sentidos, sobretudo o apurado olfato. Mesmo à distância, a presença das mulheres atrativas é percebida pelo cheiro, que o deixa em êxtase, fazendo uma analogia perfeita ao título do longa: Profumo di Donna (Perfume de Mulher).
O filme mostra os esforços que uma pessoa é capaz de fazer para esconder seus sentimentos e alimentar uma falsa aparência de força e segurança. A tensão interna que Fausto sofre pauta o seu comportamento e as relações com os indivíduos ao seu redor. Ao rejeitar a compaixão e a piedade ele acaba por também rejeitar o afeto e o amor. Assim, a jornada do personagem principal simboliza uma viagem em busca de si próprio, da auto-aceitação e do consentimento da afeição dos outros.
Com uma trama em paralelo, o longa ressalta o contraste entre o capitão e o jovem soldado. Enquanto Giovanni é um misto de inexperiência, ingenuidade e insegurança, Fausto se sobressai pela experiência, invulnerabilidade e segurança que aparenta ter. Ao invés de ser mais uma vítima de um infortúnio, o capitão se mostra como o verdadeiro guia na história, invertendo os papéis entre o cego e o seu acompanhante. À medida que a viagem decorre o jovem soldado vai aprendendo lições de vida, como saber distinguir entre aparência e realidade, amor e fraude, palavras e ações. A interpretação de Alessandro Momo é bastante convincente, tornando-o outro destaque no filme. Sara (Agostina Belli, conhecida por Mimì Metallurgico Ferito Nell'onore - Mimi, o Metalúrgico - 1972 e Telefoni Bianchi - Telefones Brancos - 1976) completa o trio de personagens principais. Ela é uma jovem apaixonada por Fausto que não se conforma com a sua enfermidade, sendo a única que conhece todas as suas facetas. Aqui cabe uma menção ao diretor Dino Risi, que consegue captar o melhor de cada ator, intercalando bons momentos cômicos com ótimas situações dramáticas.
A trilha sonora é belíssima, conseguindo transmitir os diversos sentimentos interpretados pelos atores nas cenas, além de envolver o espectador na narrativa. O roteiro trabalha muito bem os personagens, desenvolvendo diálogos brilhantes. Ganham evidência a gesticulação de Gassman, o comedimento de Momo e a sensualidade de Agostina. O filme conquistou duas vagas entre os Indicados ao Oscar nas categorias Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Filme Estrangeiro.
Com breves apontamentos, a fotografia retrata uma época casuística da sociedade italiana, repleta de significados. Nas ruas, nos trens, nos hotéis, nos terraços, nas festas e na própria língua, aos poucos vai surgindo um perfil de uma sociedade. Os italianos são alegres e receptivos, falantes, utilizam-se muito das mãos, falam alto e não poupam os palavrões em suas conversas. São religiosos, românticos e espontâneos, mas como toda sociedade patriarcal, possuem esteriótipos masculinos e femininos muito fortes. Fausto é um homem autoritário, que tem que se fazer ver como forte, uma figura que impõe. Sara reflete a situação feminina, na qual as mulheres sonham em se sentir indispensáveis para a vida do homem que amam. Todos esses aspectos traduzem com clareza o espírito mediterrâneo.
Por fim, como não poderia deixar de ser, uma breve comparação entre a versão americana (1992) com o original homônimo (1974) é inevitável. O remake de Perfume de Mulher é completamente diferente do longa italiano. Apoiando-se em aspectos hollywoodianos, como a necessidade de ter um episódio de julgamento, a versão americana estica demasiadamente a história, gastando tempo demais com o estudante, interpretado pelo fraco Chris O'Donnell (de Batman Forever - Batman Eternamente - 1995 e Batman & Robin - 1997). As cenas do tango e da Ferrari são alguns de seus pontos fortes, mas ao optar por reviravoltas melodramáticas, acaba caindo em alguns clichês. Seu grande destaque e razão de seu grande sucesso é a excepcional atuação de Al Pacino (para citar apenas alguns de seus filmes: The Godfather - O Poderoso Chefão - 1972, Serpico - 1973, The Godfather: Part II - O Poderoso Chefão II - 1974, Dog Day Afternoon - Um Dia de Cão - 1975, And Justice for All - Justiça para Todos - 1979, Scarface - 1983 e The Godfather: Part III - O Poderoso Chefão III - 1990). Os dois atores principais em cada versão (Al Pacino e Vittorio Gassman) estão impecáveis, mas o filme italiano tem um charme especial, sendo, em muitos aspectos, mais humano, sensível, despojado e envolvente. Uma pena que a refilmagem americana perdeu completamente a cultura italiana, tanto da vida cotidiana na Itália quanto do jeito italiano de se fazer cinema dos anos 70.