O cinema sempre teve e (creio eu) sempre terá uma função social. Quando assisti Contágio pela primeira vez nos cinemas em 2011, não me dava conta de que a ameaça viral que seus personagens enfrentavam poderia ser uma coisa pertinente na vida real – as noticias sobre gripe suína ou a tal da MERS, na época, passavam longe de me amedrontar – o que, provavelmente, contribuiu para que eu não captasse toda a urgência e critica que o diretor Steven Soderbergh (de Traffic, Erin Brocovich e Sexo, Mentiras & Video-Tape) e o roteirista Scott Z. Burns queriam passar.
Revendo agora, noto como nosso estado emocional e social influi na experiência de assistir um filme. Não seria exagerado dizer que os realizadores do longa foram quase que proféticos – existem inúmeras semelhanças com a nossa realidade de combate ao coronavírus – seja pela própria origem da doença na história (que curiosamente tem a ver com um morcego também) ou pela reação pública e as medidas para enfrentar a disseminação do vírus – e, pasmem – o que poderia soar em filmes de zumbi como soluções forçadas ou irreais, tornam-se aqui absolutamente verossímeis – tão real que eu acharia importante este filme ser exibido várias vezes nas emissoras de TV’s do país, como ferramenta de conscientização sobre a doença.
Apresentando vários personagens, em diferentes regiões do mundo, Contágio começa mostrando a norte americana Beth Emhoff (Paltrow), em viagem de trabalho a Hong Kong – após ir em um cassino, ela retorna para os Estados Unidos – em menos de dois dias, começa a se sentir terrivelmente doente – coriza, tosse, febre, aversão a alimentos e líquidos, convulsões – de fato, mais perigoso que o COVID-19 – o que assusta seu marido, Thomas (Damon), que imediatamente a leva para o hospital e descobre que ela esta infectada por um vírus novo e desconhecido – que, em pouquíssimo tempo, se espalha para os moradores da cidade, para todo o estado e, em seguida, todo pais – além de estar surgindo em outros países – além de Hong Kong, Inglaterra e França começam a relatar casos da doença – o que faz o responsável em saúde pública norte americana Ellis Cheever (Fishbourne) chamar a Dra. Erin Mears (Winslet) para investigar o caso – enquanto que a representante da Organização Mundial da Saúde, Leonora Orantes (Cotillard) parte para a Ásia para verificar o estado das vitimas de lá – em meio a isso, o blogueiro Alan Krumwiede (Law) tenta investigar o caso, apontando supostas irregularidades nas medidas tomadas pelo governo, usando teorias de conspiração para tentar provar suas suspeitas.
Didático em apresentar como o vírus se espalha facilmente, o longa é beneficiado por um trabalho de edição e montagem primorosos – onde closes em mãos se tocando ou relando em diversos objetos de cena, tornam-se elementos de tensão – uma maneira marcante de exemplificar o crescimento de uma ameaça invisível, mas letal – os enquadramentos e a direção de fotografia optam por tomadas fechadas, mesmo que em locais abertos – ainda inserindo uma tonalidade esmaecida e fria, a fim de causar uma claustrofobia – evidentemente, como forma de simbolizar a “prisão” que o vírus proporciona aos personagens – algo que a ótima e tensa trilha-sonora de Cliff Martinez também auxilia – ao utilizar acordes eletrônicos com várias linhas de baixo sintetizadas, as músicas conseguem conferir peso e tensão crescente nas cenas.
Contando com um elenco de estrelas que realmente esbanja talento, o roteiro consegue explorar e dar funções criticas eficientes para cada um deles, entrelaçando de forma bem ritmada cada uma de suas histórias – Soderbergh é feliz em representar varias camadas sociais durante a trama – seja pelo norte americano comum de classe média – o personagem de Matt Damon e sua neura (totalmente justificável) em preservar a saúde da filha (Anna Jacob-Heron), além da maneira como se sente preso e impotente em casa, diante da situação da pandemia - o representante público do governo vivido por Laurence Fishbourne, que sente a pressão pública e particular de tentar buscar uma solução para o problema; o que nos leva a questão de quem é ou não privilegiado em situações como essa – sem falar na forma como retrata a luta e sacrifício dos profissionais da saúde e ciência para evitar mais mortes – seja pela cientista vivida por Jennifer Ehle e a médica de Kate Winslet – cuja ambição e determinação tornam-se comoventes pelo seu destino – enquanto que na personagem de Marion Cottilard somos apresentados as pessoas que mais sofrem em meio ao caos de uma contaminação em massa: os mais pobres – os últimos a serem ouvidos ou socorridos, diante da divisão de classes que o mundo capitalista impõe.
Mas, sem dúvidas, um dos personagens mais importantes é o de Jude Law – e creio que através dele temos uma ligação ainda maior com a nossa realidade atual: a questão da desinformação – em um mundo onde noticias falsas se propagam mais rapidamente que os vírus, o papel da suposta imprensa independente torna-se contraditório – o digital influencer vivido por Law não se abala em divulgar dados infundados (sem nenhuma base cientifica) apenas para ganhar visualizações em seu blog (ou canal no YouTube) – atirando teorias como ciência comprovada – o que, consequentemente, se torna influencia para milhões de pessoas que o assistem e seguem – creio que só faltou mencionar que Alan é um terraplanista, já que ele é adepto da teoria de que a indústria farmacêutica dissemina doenças no mundo para vender seus remédios – ou questiona a eficácia dos medicamentos – se para você isso não se assemelha com os estapafúrdios movimentos anti-vacina que temos aqui no Brasil ou com grupos teóricos de conspiração – além de outros que relativizam as consequência da pandemia atual – creio que não moramos no mesmo país.
O longa somente perde força por não dar tanta atenção ou melhor solução para algumas de suas linhas narrativas – a personagem de Cotillard é um exemplo, que surge no primeiro ato e depois só no terceiro, com uma solução um tanto apressada e pouco explorada sobre as crianças que acaba sendo forçada a ajudar – um tipo de critica mais simplória à falta de empátia do sistema para ajudar os mais humildes – sem falar que não deixa de soar um pouco inverossímil o fato do personagem de Matt Damon ter contato direto (por dois dias) com dois infectados e não pegar o vírus – alegando uma imunidade pouco provável – algo que só é compensado pela forma realista com que seu personagem tenta manter a filha a salvo – por mais absurdo que pareça ele expulsar o namorado da moça a força, segurando um rifle na mão.
Evitando clichês que vimos em trabalhos mais exagerados sobre contaminações em massa – como no mediano Epidemia, de 1995 – Contágio capta ainda o caos socioeconômico que a pandemia traz para a sociedade norte-americana, mostrando a ineficiência das politicas públicas de saúde dos Estados Unidos, se tornando um filme quase que obrigatório agora por suas soluções realistas e detalhadas de como uma ameaça viral afeta o mundo inteiro – em meio de figuras públicas que classificam uma doença que já matou mais de 18.000 pessoas no mundo todo (até este exato momento em que escrevo, em 23/03/2020, às 22h15) como uma “gripezinha” ou de “histeria”, é aqui que o cinema e o entretenimento cumprem suas funções de ajudar a trazer luz e reflexão para as pessoas – e, através de seu genial e revelador plano final, traz uma resposta ao espectador que só mostra que o problema da saúde mundial não é culpa de um animal ou de uma nação especifica – o que nos lembra da xenofobia com que os chineses estão sendo vitimados hoje – Soderbergh deixa bem claro que o problema está no ser humano – em sua negligência com o estado social do próximo e de sua exploração e destruição da natureza.