Neste mundo atual mergulhado em diversas crises - política, econômica, financeira, social e, em particular, moral - não raro nos perguntamos se fazer as coisas do jeito certo realmente adianta e vale a pena. Este dilema moral é a linha-mestra que conduz o filme O Passageiro.
Michael MacCauley (o norte-irlandês Liam Neeson, de A Lista de Schindler) é um imigrante irlandês que vive em Nova York. Ex-policial, atualmente trabalha como corretor de seguros em uma vida rotineira, mas tranquila junto com a esposa Karen (a estadunidense Elizabeth McGovern, de Era Uma Vez na América) e os filhos. Todos os dias pega o trem suburbano para ir ao trabalho, de modo que acaba por conhecer, ainda que superficialmente, os outros passageiros que fazem o mesmo trajeto como, por exemplo, o velho Walt (o estadunidense Jonathan Banks, da série de TV Better Call Saul).
Em um dia normal de trabalho, é chamado pelo diretor da firma que o informa que está demitido, mesmo tendo trabalhado corretamente no local por dez anos. Arrasado, Michael vai até um bar e é consolado pelo amigo e ex-colega policial, Alex Murphy (o também estadunidense Patrick Wilson, de Prometheus). Lá, também encontra outro ex-colega policial recentemente promovido a capitão, David Hawthorne (o neozelandês Sam Neill, da franquia Parque dos Dinossauros).
Michael pega o trem para casa e uma mulher chamada Joanna (a também estadunidense Vera Farmiga, de Amor Sem Escalas) senta-se perto dele e pergunta: se fosse-lhe pedido para fazer algo a qual houvesse consequências que ele não saberia quais seriam, mas que afetaria um dos passageiros do trem, o faria? Nessa hipotética situação receberia uma quantia em dinheiro e, se realizar o pedido, receberá uma quantia extra maior. Joanna diz que, se aceitar a proposta, deve encontrar um passageiro que viaja no mesmo trem.
Joanna se retira e Michael encontra a primeira quantia em dinheiro no banheiro do trem, mas reluta em continuar com a proposta. Ele recebe um telefonema de Joanna que diz que, se não fizer o que foi proposto, isto custará a vida de todos os passageiros e de sua família.
Este é o quarto trabalho realizado por Liam Neeson em conjunto com o cineasta espanhol Jaume Collet-Serra (de Águas Rasas). Os anteriores foram Desconhecido (2011), Sem Escalas (2014) e Noite Sem Fim (2015). Todos tem em comum serem thrillers de ação com recepção morna por parte da crítica, mas que vão bem na bilheteria. O Passageiro segue essa linha, mas difere dos outros em dois pontos.
O primeiro ponto é a continuação do resgate de uma antiga tradição do cinema: filmes cujas histórias ocorrem durante uma viagem de trem. Esse resgate foi iniciado o ano passado com Assassinato no Expresso do Oriente, do ator e cineasta norte-irlandês Kenneth Branagh (franquia Thor), que é o remake do filme homônimo de 1974 do cineasta estadunidense Sidney Lumet (Um Dia de Cão).
Esse é um tipo de filme que sempre agradou o público de cinema em geral, pois vários temas podem ser encaixados nele. Podemos citar como exemplos Noite Tenebrosa (1946), da série de filmes de Sherlock Holmes interpretado pelo ator sul-africano Basil Rathbone (Farsa Trágica); Expresso do Horror (1973), com os Mestres do Terror Christopher Lee (saga O Hobbit) e Peter Cushing (saga Star Wars); o thriller Expresso Para o Inferno (1985), do cineasta russo Andrei Konchalovsky (Ray) e com Jon Voight (Animais Fantásticos e Onde Habitam), Eric Roberts (Batman, o Cavaleiro das Trevas) e Rebecca de Mornay (A Mão Que Balança o Berço) no elenco; e a comédia Jogue a Mamãe do Trem (1987), dirigido e estrelado por Danny DeVito (Irmãos Gêmeos) e com Billy Crystal (O Comediante).
Sempre que possível, as grandes produções procuram incluir cenas passadas em um trem como, por exemplo, no primeiro filme da franquia Missão Impossível (1996), dirigido por Brian De Palma (Dublê de Corpo) e estrelado por Tom Cruise (Feito na América).
O segundo ponto, que pode passar desapercebido para alguns espectadores devido às movimentadas cenas de ação, mas mostra-se atual e importante nos dias de hoje: o dilema no qual nos perguntamos se vale a pena viver e agir do modo correto, se ser "certinho" realmente compensa.
As confrontações de Michael com esse dilema também são as nossas, pois muitos de nós já passamos pela experiência de sermos descartados de um emprego no qual foram dedicados muitos anos de nossas vidas e o fato de termos sido leais à empresa, seguido as normas tais como nos foram passadas são coisas irrelevantes para uma típica companhia de um sistema capitalista, neoliberal e, no caso do Brasil, de "reforma" trabalhista.
E o fato de Michael estar com 60 anos (Liam Neeson tem, na verdade, 65 anos), faltando apenas cinco anos para a sua aposentadoria, não só aumenta nossa identificação com o personagem (devido à infame "reforma" da previdência proposta pelo "presidente vampirão" Michel Temer, cuja legitimidade no cargo é constantemente contestada), como também mostra o descaso e a crueldade do "estado mínimo" neoliberalista para com pessoas da Melhor Idade.*
E, devido a tudo isso, vem a pergunta: Vale a pena ser honesto? Devemos mesmo fazer as coisas direito com tanta corrupção ao nosso redor vindo de instituições que, teoricamente, deveriam nos proteger como, por exemplo, a polícia?
Em O Passageiro a resposta para essas perguntas é sim. A verdade é que o filme é cheio de clichês, tal como os bandidos cruéis que matam sem dó nem piedade e que, ao final, tem um fim merecido. Mas, esses mesmos clichês são usados corretamente. O diretor Collet-Serra mostra bastante competência nas cenas de ação e suspense e na direção de atores, principalmente de Liam Neeson.
Liam Neeson está no seu período de maturidade como ator e sua atuação reflete essa maturidade. Ele está muito bem no papel de homem trabalhador e honesto que, ao sofrer as intempéries da vida e estar com poucas condições de enfrentá-las, tem sua consciência torturada entre continuar no caminho certo ou seguir a trilha sedutora, rápida e fácil do "lado negro da Força". E nas cenas de ação demonstra boa forma física (foi pugilista amador na sua juventude).
Vera Farmiga faz um tipo de personagem que eu aprecio muito em filmes: fisicamente não aparece o tempo todo, mas sente-se a presença dela por toda a trama, seja falando ao celular ou não. E ela interpreta uma vilã muito dura, implacável, do tipo que ao se olhar pergunta-se: "Como ela pode ser tão má sendo tão bonita?".
Sam Neill e Elizabeth McGovern poderiam ter sidos os coadjuvantes de luxo da fita, mas, tiraram o "de luxo" e ficaram apenas como coadjuvantes. Neill ainda fica com algum destaque como o chefe de polícia que aparece quase ao final da história durante um momento de tensão. Já Elizabeth está tão discreta como a esposa de Liam que mal aparece. Desperdício de talentos.
Jonathan Banks está bem como idoso resmungão Walt e o britânico Shazad Latif (da série Star Trek: Discovery) também chama a atenção como o arrogante e insuportável corretor da bolsa de valores. Quanto a Patrick Wilson e ao restante do elenco, estão adequados aos papéis designados e não comprometem.
A trilha sonora do espanhol Roque Banõs (O Homem nas Trevas) também está adequada para um thriller de ação. Já a fotografia do canadense Paul Cameron (da franquia Piratas do Caribe) achei um tanto escura, mas acredito que isso deva mais ao equipamento que exibiu o filme do que ao trabalho de Paul em si.
Uma curiosidade: o título original em inglês, The Comutter, que foi traduzido como O Passageiro não está incorreto, mas é mais usado para definir um passageiro costumaz ou habitual, isto é, que tem o hábito de pegar o transporte público em dias e horários de forma regular.
O Passageiro entrega ao público o que promete: uma viagem de trem alucinante com boas atuações do seu elenco principal. E, de quebra, em sua premissa oferece temas para pensar e refletir, de modo que acaba por se tornar um filme acima da média no gênero e que vai agradar o público brasileiro assim como o fez no exterior - foi bem nas bilheterias, recuperou o investimento e deu lucro. Podem assistir sem receio de desperdiçar tempo e dinheiro.
*Quem quiser aprofundar-se mais sobre o assunto, sugiro o documentário Capitalismo: Uma História de Amor (2009), do polêmico e genial documentarista estadunidense Michael Moore (Fahrenheit 9/11).