Há grandes obras que geram pequenos momentos que chegam a fazer a vida de cinéfilo valer a pena. Assistir à nova obra-prima de Paul Thomas Anderson é um exemplo absurdo de como o Cinema pode não ser fácil, e mesmo assim, completamente satisfatório. Aliás, muito mais que satisfatório.
Se em algum momento somos transportados pra fora dessa história, é em seu final. Do início ao fim, a trajetória de Freddie Quell é muito mais que interessante: é hipnotizante. Aliás, pra que esse contágio completo aconteça, não há como não falar sobre a direção de arte genial e a composição de vestimenta de todos os personagens. Tudo absolutamente perfeito. Aliado a isso, existe a fotografia de Mihai Malaimareh Jr., que em diversos momentos situa os personagens dentro de locais, mesmo que fechados ou arejados, dando constantemente uma impressão claustrofóbica. Claro que nada disso seria possível sem o domínio da câmera completo que Anderson tem, como por exemplo, numa das cenas iniciais em que podemos conferir, enquanto Freddie foge de um cliente que havia agredido, uma visão panorâmica de seu, então, local de trabalho. Ou até a cena da prisão, em que o diretor divide a tela pra demonstrar a total diferença entre os dois sujeitos que analisa. E ao longo do filme ele vai usando closes e enquadramentos até, de certa forma, incômodos, como se estivéssemos dentro da história, mas ao mesmo tempo não pudéssemos nos envolver. E nessa abordagem, os personagens são o que são, por si só, atores aos olhos do público.
Sob as mãos de um cineasta que dirige atores como ninguém faz atualmente, Joaquin Phoenix dá à luz uma performance nada menos que genial. Não tem como deixar de notar os trejeitos construídos por ele enquanto seu Freddie caminha, coloca as mãos nos quadris, fala quase inaudivelmente (demonstrando sua insegurança) ou quando lança um olhar nervoso, ou surta diante de uma situação de descontrole. Importante notar, inclusive, que o personagem, apesar de protagonista do filme, não tem tantas falas, e que, mesmo assim, Phoenix consegue embasbacar a cada cena em que aparece para nos revelar esse individuo tão transtornado.
Mas Joaquin não brilha sozinho, Philip Seymour Hoffman arrebata a tudo e a todos com a composição da entonação em cada frase proferida por Lancaster Dodd. A construção de personagem não deve nada, e diante disso, está criado um dos maiores duelos performáticos que eu vi nesse milênio entre dois atores em um filme. E ambos estão incríveis, e complementando-se. Não há Dodd sem Quell, e vice-e-versa.
O que leva, diretamente, à relação entre os dois personagens, e à história que é contada em O Mestre. Embora, no título, a referência nos levar diretamente ao personagem de Seymour Hoffman, somos apresentados inicialmente a Joaquin Phoenix, e só depois a seu tutor. Claro que há uma razão pra isso: criamos um laço com o personagem que é apresentado primeiro, e é evidente que há a necessidade de conhecer Freddie primeiro, uma vez há uma relação quase que de submissão entre ele e Lancaster Dodd.
Quando confrontado com a personalidade explosiva de Freddie, Dodd vê ali um ser inerentemente animal. Tudo o que ele havia tentado negar até então, com “A Causa”. O que vai gerar um eco numa cena mais próxima do fim do filme, quando Dodd é perguntado sobre uma mudança de foco na religião criada por ele, e fica visivelmente perturbado. A partir do momento em que Dodd enxerga através de Freddie, descobre uma motivação para promover uma transformação em seu, futuramente, pupilo. Sua personalidade naturalmente dominadora, então, quer literalmente “domar a fera”, e leva essa máxima até as últimas consequências.
Já Freddie vê Dodd como um ser superior e sábio. Talvez por não ter perspectiva na vida. Nisso, a primeira cena de interrogatório entre os dois é muito reveladora. Nela, apesar de Freddie relutar muito pra contar as coisas que lhe são perguntadas, o poder de persuasão do “mestre” e suas técnicas fazem com que as verdades logo venham à tona. E ali, se havia alguma desconfiança, logo se dissipa para temos o início de uma relação quase doentia entre a cria e seu mestre. Um cachorro e seu adestrador. Um animal, e seu criador. A metáfora vai ficando mais forte enquanto o filme avança, alcançando níveis máximos nas sequências da “parede e janela”.
O que traz, diretamente, a potente e imprescindível personagem de Amy Adams, Peggy Dodd na trama. Interpretada com uma forte e sensacional carga dramática, está aqui a personificação do ditado “por trás de todo homem há uma grande mulher”. Peggy é a alma de Lancaster e a única personagem que oferece alguma influência real sobre o chefão d’A Causa. Ela é a força que o mantém preso às raízes de seu pensamento. As ideias provém dele, as ações partem dela. (“This is something you do for a billion years or not at all”). E mais do que necessário, para criar o mito em cima de seu marido, é que ela apareça pouco na história. Porém, é aí que mora o contraponto: todas as vezes em que surge, é soberana, exercendo controle e colocando Lancaster de volta ao chão (como na cena do banheiro em que o “ajuda”, de formas nada convencionais, a voltar aos eixos). Mesmo que indagando, ou aceitando a vontade do marido, a força motriz da implantação da dúvida é parte integrante de sua função na história.
O que é explicitado numa cena absurdamente genial, após a discussão em NY quando um homem questiona as coisas em que A Causa se centrava, onde Peggy, fria e calculadamente, diz:
“We will never dominate our evironment the way we should unless we attack.”
Assim, Peggy, Lancaster e Freddie são, por si só, praticamente uma família. Ele, ao final, cria uma relação praticamente paternal pelo objeto de domínio (e estudo); ela, vê em Freddie um coitado, em busca de sentido na vida, e se coloca totalmente disposta a ajudá-lo; já Freddie, apesar de se rebelar por causa de sua natureza primitiva, cria uma relação quase que amorosa com Lancaster, capaz de levá-lo a fazer atrocidades com pessoas que apenas falem mal de sua obra. Por isso a cena final entre os três elementos da história é maravilhosa. A mise-en-scene, inclusive, cuida de colocar cada um em seu respectivo lugar de forma perfeita. E então, quando Peggy desacredita em Freddie, Lancastar lhe dá um ultimato.
“If you figure out a way to live without a master, any master, be sure to let the rest of us know, for you would be the first in the history of the world.”
São tantas coisas contidas em “O Mestre” que talvez seja difícil de assimilar em uma primeira assistida.
É, sem dúvidas, o filme mais truncado de Paul Thomas Anderson, mas o roteiro é tão genial quanto eu poderia esperar. Gosto também das lacunas que são criadas ali, pra que se interprete da forma que achar conveniente. É bom também que seja imparcial com a crença, não só de A Causa, mas como qualquer religião. Afinal, qualquer uma poderia ser tratada ali, não é mesmo? Talvez, por isso, o final tenha sido completamente diferente do que eu esperava. Mais otimista do que eu esperava, mais redentor. Talvez seja até muito atípico na filmografia de Anderson. Ainda assim, provocativo. E não me preocupa a má aceitação do filme. O tempo há de reconhecê-lo.
Só mais uma coisa a dizer: Paul Thomas FUCKING Anderson, you did it again!
Obra-Prima!