Comunicação, dádiva para muitos, problema para muitos outros. Desde que os primeiros ruídos foram proferidos pelo homem, há milhões de anos, lá estava ela. O que tem mudado é a forma como vem sendo propagada, evoluindo constantemente até chegar aos WhatsApps de hoje. Na Inglaterra dos anos 1920, contudo, o instrumento mais inovador para contribuir na divulgação de uma ideia, a “novidade do momento”, era o rádio. É naquele período histórico entre guerras que se passa O Discurso do Rei, longa baseado nos dramas reais vividos pelo Rei George VI, que desde muito tempo antes de assumir a coroa britânica, quando ainda era apenas o Príncipe Alberto, também conhecido como o Duque de York, convivia com uma insuportavelmente angustiante gagueira, um problema cuja gravidade se evidenciava toda vez que ele precisava falar em público, tarefa da qual ele não tinha como fugir, uma vez que o Duque, desde sempre, era um membro da família real. A monarquia britânica estava, pela primeira vez na história, entrando nas casas de seus súditos, por meio do rádio, e cabia ao jovem Príncipe livrar-se de seu inconveniente problema o quanto antes.
Antes de explorar mais detalhadamente a comunicabilidade abordada no filme, cabe uma pequena explanação acerca da gagueira que, a despeito de ser comumente associada ao humor e à caricaturização, é um distúrbio da fala sério, capaz de comprometer drasticamente a vida social de qualquer pessoa, mesmo que seja o Rei da Inglaterra. Quem é vítima dessa infeliz perturbação, além do clássico sintoma de repetir algumas sílabas, acaba esticando as vogais, aumentando os intervalos entre as palavras, que parecem ficar emperradas e, por fim, desenvolvendo uma insegurança natural por antever que não vai conseguir falar corretamente, o que acarreta involuntários engasgos, em que a voz sai por alguns milésimos de segundo e é imediatamente interrompida, enfim, um descontrole sobre a própria fala. Por mais que a mídia sempre nos apresente personagens cômicos acometidos desse mal, dos quais o mais famoso talvez seja o Gaguinho, o porquinho dos desenhos animados da série Looney Tunes da Warner, abordagens realísticas como a de O Discurso do Rei nos fazem lembrar, acertadamente, que ser gago não é nem um pouco engraçado.
O cerne do filme é o tratamento que o Rei faz com Lionel Logue, um australiano conhecedor de técnicas vocais que ajudou muitos soldados, traumatizados após voltarem da Primeira Guerra Mundial, a recuperarem a articulação da fala. Mark Logue, neto de Lionel, co-escreveu O Discurso do Rei: Como Um Homem Salvou a Monarquia Britânica, após ter sido procurado pela produção do longa, em 2009. Ele diz que havia encontrado, por acaso, os diários do avô, falecido em 2001, e se dispôs a compartilhá-los. Com essa preciosíssima descoberta, alguns diálogos do filme, que estava em pré-produção, foram reescritos. O livro de Mark Logue foi lançado logo depois do longa, cujo roteiro, portanto, não é considerado adaptado, e sim, original. Roteiro foi um dos 4 Oscars ganhos por O Discurso do Rei, além do de Melhor Filme, Diretor para Tom Hooper e Ator, merecidamente, para Colin Firth, que reproduziu os travamentos de fala no timing certo para uma representação fidedigna do Rei George VI.
Na trama, o Príncipe Alberto encontra em sua esposa Elisabeth (Helena Bonham Carter) apoio e suporte para vencer sua dificuldade na fala. Esse apoio ele não teve o suficiente por parte de seu pai. Versado na dialética e já com pleno domínio do uso do microfone, o Rei George V (Michael Gambon), não era tão paciente assim com o filho. A pressão exercida pelo pai só aumentava a insegurança do jovem. É essa busca do Príncipe pela conquista da segurança ao executar um dos dons básicos da vida, a fala, que o leva a conhecer o ‘terapeuta vocal’ Lionel Logue (Geoffrey Rush). Tem início uma amizade, a princípio improvável, mas que, com o passar do tempo, se mostra autêntica. Já na primeira consulta, Logue trata de estreitar a relação doutor-paciente, ao optar por chamar o tão importante cliente apenas de ‘Bertie’, como só a família o chamava.
O inicialmente inseguro Duque de York, após conhecer o ‘doutor’, vai colocando em prática as técnicas não muito convencionais que dele aprende e, mais importante, passa a acreditar na sua cura. É acalentador acompanhar, ainda no primeiro ato da projeção, Logue convencendo ‘Bertie’, digo, o Duque de York, a ler em voz alta ao som de música clássica e, após gravar sua voz em um ‘revolucionário’ aparelho vindo da América, dar o disco a ele de presente. Em seguida, quando o futuro Rei ouve a leitura fluente que fez, graças à música que ‘distraiu’ o seu cérebro, sua expressão é um misto de espanto e esperança, que se une à de sua esposa, cujo companheirismo sincero é acalentador. Igualmente comovente é observar o carinho que o Príncipe demonstra para com suas duas filhas, Margareth, a mais nova, e Elisabeth (ela mesma, a atual Rainha da Inglaterra), contando a elas histórias de ninar, sem se preocupar com a maneira como a voz vai sair, na certeza da amorosa retribuição que delas vai receber, simbolizada por sorrisos, beijos e abraços de quem verdadeiramente admira o pai que tem.
Os anos se passam, e cabe ao relutante Duque de York assumir a coroa, após a morte do pai e a renúncia do irmão mais velho, o Príncipe David (Guy Pearce), que preferiu se casar com Wallis, que já era divorciada, o que contrapõe os princípios da família real. Essa transição acontece em plena iminência da 2ª Guerra Mundial, com a notícia de que tropas da Alemanha nazista estão invadindo a Polônia. Os discursos indubitavelmente persuasivos que Hitler profere à sua nação podem ser vistos nos noticiários exibidos nos cinemas da época. Em um deles, o jovem Rei comenta: “Não entendo o que ele está dizendo, mas sem dúvida está falando muito bem.” O longa não perde a oportunidade de, com isso, traçar uma ácida ironia envolvendo aquele orador impecável de discurso tão destrutivo.
A Inglaterra, portanto, precisará, neste momento difícil, de um rei firme, cuja postura seja perceptível em seus discursos à nação, como o Primeiro Ministro britânico Winston Crurchill (Timothy Spall) ressalta ao novo Rei. Alberto assume o nome pelo qual passará a ser conhecido, George VI, e seu desempenho ao microfone será posto em prova rapidamente, em seu primeiro discurso oficial como Rei da Inglaterra, missão para a qual, não só as técnicas, mas o apoio moral de Logue será imprescindível. Quando, enfim, é mostrado o referido discurso que dá título ao filme, o cinema, como expressão de arte, se encarrega de transformá-lo, ao som da Sétima Sinfonia de Beethoven, Segundo Movimento, em uma sequência cativante, triunfante, apoteótica.
O rádio na Europa dos anos 1930 foi importantíssimo para as notícias sobre a guerra que estava por vir, tanto quanto durante todo o período do conflito, que se estendeu à década seguinte, em que cidadãos acompanhavam as notícias que se seguiam, na esperança de ouvir o fim daquele horror, o que só viria a acontecer em 1945. Aos chefes de Estado não havia outra alternativa a não ser aprender e se acostumar a falar por meio daquele veículo, que tinha chegado para ficar e, diga-se de passagem, permanece vivo até hoje e vai muito bem, obrigado. Os discursos dos líderes pelo rádio passaram a ser fundamentais para elevar a autoestima das nações que os ouvissem. No caso de George VI, ele não pôde contar com a edição de fitas, o que, para ele, seria um alívio. O videotape só chegaria na década de 1950. Os discursos do Rei George VI teriam que ser ao vivo para todo o Reino Unido e, segundo Mark Logue, seu avô Lionel esteve ao lado do Rei em seus principais pronunciamentos, lhe dando o apoio e a segurança que este necessitava para soltar a fala com fluidez.
Quem assistir ao filme em DVD vai poder conferir, nos extras, dois discursos do verdadeiro Rei George VI, realizados em 1939 e 1945, antes e depois da guerra. É possível sentir um misto de insegurança e confiança em sua voz, e é recompensador constatar que as técnicas e, principalmente, a amizade de Lionel Logue tiveram reflexo na postura do Rei diante dos microfones. O Discurso do Rei ilustra, portanto, com uma qualidade técnica impecável e interpretações memoráveis, um período histórico importante e curioso da monarquia britânica, mas também versa, com extrema humanidade e empatia, sobre a persistência em encontrar formas de amenizar problemas e, com isso, até superá-los.