Nesta segunda década do século XXI, o planeta Terra está a passar por um período no qual está andando para trás quando se fala em direitos humanos e do cidadão. Basta ver a tolerância zero e o ódio com os quais os refugiados e imigrantes são tratados na União Europeia por pessoas como a infame líder da extrema-direita francesa, Marine Le Pen (seguindo o péssimo exemplo dado por seu pai, Jean-Marie Le Pen) e, nos EUA, pelo ainda mais infame presidente Donald Trump.
O Brasil sempre teve o mal hábito de, sob o argumento de parecer e querer ser mais "moderno", copiar tudo o que vem do estrangeiro, o que inclui esta triste tendência de desprezar as minorias e todos aqueles que não se encaixam nos estereótipos branco, ocidental e de cultura judaico-cristã. Podemos citar como exemplo de representantes dessa onda neofascista os deputados federais "pastor" Marcos Feliciano e Jair Bolsonaro (aliás, considerado "o político mais repulsivo do mundo" pelo site de notícias australiano News), com seu ódio manifesto contra negros, homossexuais e esquerdistas.
As mulheres também não escapam dessa onda. Além dos políticos acima e outros menos citados, o atual governante do país, Michel Temer, além de ter a legitimidade de seu cargo contestada a todo instante, enfrentar acusações de corrupção e obstrução da justiça e com a popularidade indo pelo ralo, também mostra ser um homem de pensamentos, valores e ideologia antiquados e ultrapassados. Ao assumir definitivamente o governo após o impeachment de Dilma Rousseff, formou seu ministério apenas com homens brancos, sem nenhum negro e nenhuma mulher (recuou após a repercussão negativa).
Em um pronunciamento oficial no dia internacional da mulher, ao dizer que o papel das mulheres na economia é serem espertas no orçamento doméstico, "além de cuidar dos afazeres domésticos", reduziu o papel da mulher à mais do que reacionária ideia que mulheres foram feitas para cuidar da casa, marido e filhos.
Sua esposa, Marcela, que tem a alcunha de "bela, recatada e do lar" - alcunha essa dada por uma revista de grande circulação e da qual a atual primeira-dama do país nunca mais se livrará - não só reforça essa visão do marido, como é tida como alguém submissa, alienada e sem opinião própria.
Por todo esse cenário mostrado, o lançamento do filme Mulher-Maravilha torna-se mais do que oportuno. Porém, antes de falarmos sobre o filme, vamos conhecer um pouco mais da personagem que o originou.
Desde o seu surgimento nos EUA, na década de 1930, as HQs, em particular as de super-heróis, tiveram grande sucesso e, como não podia deixar de ser, geraram polêmica. A principal acusação que se fazia a esse novo tipo de arte era a de "péssima influência sobre as crianças". Em 25 de outubro de 1940, foi publicado na revista Family Circle (Círculo Familiar, em inglês), uma entrevista intitulada "Não ria dos quadrinhos", feita com um professor, psicólogo e inventor chamado William Moulton Marston, na qual, baseado em um artigo de sua autoria, o entrevistado afirmava o potencial educacional das histórias em quadrinhos.
Marston era um homem com ideias e conceitos bastante avançados para a sua época: era a favor do movimento sufragista (que lutava pelo direito do voto feminino), achava que as mulheres deveriam ser livres e independentes tanto quanto quisessem e vivia em uma relação poligâmica com duas mulheres, ambas cultas e emancipadas. E, além disso, ajudou a desenvolver o polígrafo - mais conhecido como "detector de mentiras".
O artigo de Marston que gerou a sua entrevista, chamou a atenção do editor Max Gaines, das editoras National Periodical of American Publications e All-American Publications que, posteriormente, se juntariam para formar uma nova editora, a DC Comics. Gaines achava que as HQs precisavam ser renovadas e pediu a Marston para criar uma personagem nova e diferente.
Para Morston, esse novo herói deveria abraçar o amor e a paz no lugar da violência e da guerra. Diz a lenda que, ao compartilhar as suas idéias com sua esposa, Elizabeth, esta teria dito: "Bom, mas faça-o uma mulher".
Marston apresentou a ideia a Gaines, que a aprovou. O escolhido para desenhar a nova personagem foi H. G. Peter, um excelente ilustrador que já havia colaborado para a revista sufragista Modern Woman (Mulher Moderna). Foi pedido a Peter que a nova personagem fosse inspirada nas "pin-ups" desenhadas pelo ilustrador peruano radicado nos EUA, Alberto Vargas, que eram publicadas na revista Esquire.
A primeira história completa da Mulher-Maravilha apareceu em dezembro de 1941 na Sensation Comics, em uma época na qual os super-heróis masculinos, tais como Batman, Lanterna Verde e Superman, dominavam totalmente. As mulheres que apareciam nas histórias geralmente eram mães, irmãs, amigas, colegas de escola e/ou de emprego, namoradas e, no máximo, esposas, todas decididamente caseiras. Porém, a Princesa Amazona impôs-se, fez sucesso e, no ano seguinte, já tinha a sua própria revista.
Além de romper a barreira masculina, as histórias da Mulher-Maravilha inovavam por serem menos violentas (a violência era usada somente em auto-defesa ou em defesa de outrem) e por ensinarem às crianças que a crença da superioridade masculina e o preconceito contra as mulheres era algo errado e que o poder do amor vence todo o mal. Morston chegou a dizer que "A Mulher-Maravilha é a propaganda psicológica para o novo tipo de mulher que deve, creio eu, governar o mundo".
A obsessão de Moulston em descobrir segredos das pessoas o levou à invenção do detector de mentiras, como vimos anteriormente. Essa mesma obsessão foi levada para a HQ da Mulher-Maravilha com a sua famosa corda mágica dourada que, quando amarrada em uma pessoa, a obriga a dizer a verdade. Mas, acabou por gerar uma polêmica inesperada: esse "laço da verdade" seria, nas entrelinhas, uma referência ao "bondage", um fetiche sadomasoquista no qual o parceiro é amarrado (Morston era um adepto dessa prática). Para aqueles que ficaram curiosos, cenas de "bondage" podem ser vistas no filme Cinquenta Tons de Cinza (2015).
Ao longo do tempo, as histórias da Mulher-Maravilha foram sofrendo alterações: após o final da II Guerra Mundial e ao longo da década de 1950, a Princesa Diana deixou de ser um símbolo feminista para ser mais "feminina", preocupando-se com os apuros em que seu namorado se metia. No final da década de 1960, época de muitas mudanças sociais e de comportamento, a Mulher-Maravilha passou a ter uma imagem mais realista, com suas histórias bastante influenciadas por seriados policiais muito em voga naquela época.
Mulher-Maravilha conta a história de Diana (a israelense Gal Gadot, de Batman vs Superman: A Origem da Justiça), filha de Hipólita (a dinamarquesa Connie Nielsen, de Gladiador), rainha das amazonas, as lendárias mulheres-guerreiras da mitologia grega que estavam sob o comando da General Antíope (Robin Wright, da série House of Cards). Em um passado distante, elas ajudaram Zeus, o rei dos Deuses do Olimpo, a combater e derrotar o sangrento deus da guerra, Ares (o inglês David Thewllis, da franquia Harry Potter). Após a batalha, as amazonas retiram-se para a linda Ilha Paraíso onde vivem isoladas, mas em paz e harmonia. Contrariando o desejo de Hipólita, Diana foi treinada por Antíope para ser uma grande guerreira.
Um dia, Diana viu um avião perseguido e abatido por um navio de guerra. Nesse avião estava Steve Trevor (o estadunidense Chris Pine, de Horas Decisivas), capitão da força aérea dos EUA e espião que fugia das forças armadas alemãs. Diana salvou a vida de Trevor e soube por ele da "Guerra para acabar com todas as guerras" (que, posteriormente, ficaria conhecida como a I Guerra Mundial), um violento conflito que envolveu o mundo inteiro. Diana desconfiou que Ares estava por trás do conflito e decidiu voltar com Steve para Londres, Inglaterra, para deter o deus da guerra.
Muitas pessoas foram assistir Mulher-Maravilha achando que, além de um filme de uma super-heroína, veriam também um manifesto feminista, mas surpreenderam-se com o resultado. O filme, de fato, mostra e denuncia o cinismo, o machismo e o preconceito dos homens contra as mulheres no início do século XX (e que, infelizmente, insistem em continuar nesta segunda década do século XXI), mas não o faz de forma panfletária do tipo "mulheres de valor" contra os "porcos machistas". Nesse aspecto o filme As Sufragistas consegue ser bem mais engajado. Mesmo o seriado de televisivo da década de 1970 estrelado por pela ex-Miss Mundo EUA Lynda Carter (que, diga-se de passagem, fazia jus ao nome, e continua assim até hoje) era bem mais adepto do feminismo (embora com uma vertente cômica) do que este filme. Na década de 1980, figuras femininas de grande destaque como, por exemplo, a ex-Primeira-Ministra britânica Margareth Thatcher, extrapolaram ao pregarem a ideia que, ao igualarem-se ao homens, as mulheres tornavam-se superiores a eles.
Mulher-Maravilha, definitivamente, não prega essa ideologia. O que filme mostra de um modo equilibrado é que as mulheres podem estar em um mesmo patamar e um mesmo nível que os homens em todos os aspectos sem se rebaixarem ou terem que apelar para um feminismo radical usando a inteligência e o bom humor para obterem a igualdade. E esse aspecto mostrado de modo bem sucedido deve-se a três mulheres que são figuras-chaves nesta obra: as atrizes Robin Wright e Gal Gadot e a diretora Patty Jenkins.
Patti Jenkins já havia chamado a atenção, em 2001, como diretora e roteirista do premiado curta-metragem Velocity Rules, que definia como uma mistura de Pedro Almodóvar (Volver) com filme de super-heróis. Foi o bastante para Hollywood chamá-la para a direção de Monster - Desejo Assassino (2003), para o qual também escreveu o roteiro. Monster foi aclamado por crítica e público, deu a Charlize Theron (Mad Max: Estrada da Fúria) o Oscar e o Globo de Ouro de Melhor Atriz, e a Patty o prêmio de Melhor Primeiro Filme do Independent Spirit Award, um dos mais importantes festivais do cinema independente no mundo.
Patty só voltaria a dirigir um filme de longa metragem em 2011, chamado Five, um projeto para a televisão com mulheres atuando, dirigindo e escrevendo roteiro de cinco histórias sobre o impacto do câncer de mama na vida das pessoas. A demora deveu-se ao fato que Patty engravidou e queria estar perto de seu bebê. Por isso, nesse período concentrou seu trabalho na TV dirigindo séries como Entourage (veja a crítica do filme de 2015 aqui), Caindo na Real, The Killing - Além de Um Crime e Betrayal.
Porém, ninguém perdeu por esperar. O trabalho de Patty na direção de Mulher-Maravilha é excelente, com uma segurança e firmeza raramente vistas. As cenas de ação - em especial a da batalha das amazonas contra as tropas alemãs (para mim, a melhor do filme) - são espetaculares e empolgantes e, na direção de atores, tem um trabalho de igual excelência. E, graças aos deuses do Olimpo, já tem presença garantida na direção de Mulher-Maravilha 2, com lançamento previsto para 2019.
Há muito tempo que Robin Wright deixou de ser a esposa de Sean Penn (Caminhos Violentos) e não me refiro apenas ao divórcio do casal, mas também de um certo modo ficar à sombra do ex-marido - cujo talento, diga-se de passagem, é incontestável. Robin é igualmente talentosa e demonstra isso ao longo de Mulher-Maravilha unindo a beleza madura a uma personalidade marcante o que faz da General Antíope uma grande personagem, ponto de ter seu retorno garantido em Liga da Justiça.
Muitos fãs da Mulher-Maravilha torceram o nariz quando foi anunciado oficialmente que era Gal Gadot quem interpretaria a sua heroína preferida (o nome da vez para o papel era o da bela Megan Fox, de Garota Infernal), uma atriz cujo trabalho mais relevante até então era na franquia Velozes e Furiosos.
Qualquer dúvida que poderia haver foi devidamente dissipada a partir do mal compreendido filme Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016). Gal, mostrou ser merecedora do papel com muita presença de espírito e aqueles que não acreditavam na sua capacidade foram obrigados a dar o braço a torcer (mas, neste caso em particular, não se importaram e o fazer).
Gal mantém o alto nível de Batman vs Superman em Mulher-Maravilha e no recém-lançado Liga da Justiça, sendo ao mesmo tempo feminina, forte, inteligente e bem humorada. Quem é que não gostaria de ter uma mulher assim ao seu lado? A escolha para a intérprete da Princesa Amazona não poderia ter sido melhor!
Chris Pine, novamente faz um bom trabalho de atuação ao interpretar Steve Trevor. Aliás, sua performance melhora a cada filme, podendo, futuramente, ambicionar papeis mais desafiadores. O único problema é o risco que ele corre de ficar marcado por um único tipo de papel: o de militar, mais especificamente o de capitão, como já aconteceu na saga Star Trek e em Horas Decisivas.
O escocês Ewen Bremner (T2 Trainspotting), o francês Said Taghmaoui (Trapaça) e o estadunidense Eugene Brave Rock (Enterrem Meu Coração na Curva do Rio) convencem como a equipe de apoio a Steve Trevor - em particular Ewen, como um atirador alcoólatra com transtorno de estresse pós-traumático. Aliás, foi uma boa sacada fazer desse três um time internacional, pois atrai espectadores de vários países além de ser uma demonstração de tolerância neste mundo atual no qual estrangeiros e minorias são vistos com desconfiança e discriminados como nunca.
É claro que os heróis não seriam os heróis sem os vilões e, em Mulher-Maravilha, eles são igualmente convincentes.
A fleuma britânica (que, no Brasil, é chamada de "nariz empinado") de Davis Thewllis faz de Ares um vilão digno de enfrentar Diana.
Com sua interpretação da Dra. Veneno, a atriz espanhola Elena Anaya (Fale Com Ela) mostra que sua conquista do Prêmio Goya (o Oscar da Espanha) de Melhor Atriz pelo filme A Pele Que Habito (2011), dirigido pelo seu conterrâneo cineasta Pedro Almodóvar, não foi por mero acaso.
O filho do grande cineasta John Houton (Os Vivos e Os Mortos), Danny Houston (Libertador), manda bem como o general alemão Erich Luddendorff, mas mostra uma falha no texto - em geral bem escrito - criado pelo roteirista Allan Hienberg (série Tal Mãe, Tal Filha): o general está "nazista demais". "Como assim?", pode perguntar alguém. A história passa-se durante a I Guerra Mundial e o flagelo nazista surgiu depois, na década de 1930, culminando na II Guerra Mundial. Um pouco de pesquisa histórica teria ajudado...
A fotografia de Matthew Jensen (Quarteto Fantástico) está boa, mas um pouco clara demais. Talvez isso seja devido às críticas da fotografia escura de Batman vs. Superman e, provavelmente, Matthew não quisesse receber as mesmas críticas.
A trilha sonora composta por Rupert Gregson-Williams (A Lenda de Tarzan) segue o padrão de produções semelhantes. Se não é particularmente memorável, tampouco desaponta.
Mulher-Maravilha confirma e supera todas as expectativas que haviam. O filme pode não ser feminista, mas, sem dúvida, é de empoderamento feminino, com tudo de bom que essa definição traz. É um símbolo de esperança em um planeta cada vez mais caótico. Diana Prince é aquela heroína pela qual o mundo aguardava, tal como dizia, profeticamente, a letra da música-tema do seriado de TV (de autoria de Norman Gimbel e Charles Fox):
Wonder Woman, Wonder Woman.
All the world's waiting for you,
and the power you possess.
In your satin tights,
Fighting for your rights
And the old Red, White and Blue.
Wonder Woman, Wonder Woman.
Now the world is ready for you,
and the wonders you can do.
Make a hawk a dove,
Stop a war with love,
Make a liar tell the truth.
Wonder Woman,
Get us out from under, Wonder Woman.
All our hopes are pinned upon you.
And the magic that you do.
Stop a bullet cold,
Make the Axis fold,
Change their minds,
and change the world.
Wonder Woman, Wonder Woman.
You're a wonder, Wonder Woman.
Tradução livre feita por mim:
Mulher-Maravilha, Mulher-Maravilha,
Todo o mundo está esperando por você
E pelo poder que você possui.
Em seu shorts de cetim,
Lutando por seus direitos,
E os velhos vermelho, branco e azul.
Mulher-Maravilha, Mulher-Maravilha,
Agora o mundo está pronto para você
e as maravilhas que você faz.
Faça do falcão, uma pomba,
Pare uma guerra com amor,
Faça um mentiroso dizer a verdade.
Mulher-Maravilha,
Tire-nos lá de baixo, Mulher-Maravilha,
Todas as nossas esperanças estão amarradas em você
E na mágica que você faz.
Pare uma bala fria,
Faça o eixo dobrar,
Mude suas mentes,
e mude o mundo.
Mulher- Maravilha, Mulher-Maravilha,
Você é uma maravilha, Mulher-Maravilha.