Jacques Audiard foi saudado mundialmente com o lançamento de seu O Profeta (inclusive indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010), uma original história do submundo do crime na França. Talvez por isso, fosse totalmente inesperado seu próximo filme tratar da relação amorosa entre um casal. Mas não se iluda, porque a relação entre Stéphanie (Marion Cotillard – que ganhou o Oscar com Piaf-Um Hino de Amor) e Ali (Mathias Schoenaerts) não tem um começo exatamente romântico.
Ali é um típico macho alfa, movido a testosterona, e aparentemente com menos massa encefálica que as orcas do parque aquático onde Stéphanie trabalhava. Ele é um praticante de luta, e começa a lutar para ganhar dinheiro. Então, o que ele entende é bater. Ele é do tipo que bate, fisicamente ou no sentido figurado, e depois assopra. Ele bate no filho, e depois quer compensar com presentes. Ele desrespeita Stéphanie, e quer compensar com sexo. Ali se assemelha muito às orcas, que são capazes de ferir quem lhe dá comida (sua irmã), ou carinho e amor (Stéphanie e seu filho Sam). Na relação com as mulheres, Ali é somente sexo casual, sem compromisso, e na relação com o filho, ele é irresponsável e desatento como um adolescente. Esta bomba-relógio explode numa tragédia anunciada, que fará surgir dessa montanha de músculos e ossos uma fragilidade insuspeita.
Este é sem dúvidas o maior trunfo do filme: a dicotomia expressa no contra-ponto entre fragilidade e força, feminino e masculino, feio e belo (as cruas e extremamente realistas cenas de luta em oposição ao “balé” das orcas no parque aquático), coração e mente. Eu vejo que o filme é mais sobre Ali do que Stéphanie. Por mais bruto, irresponsável, e por mais bobagens que um ser humano tenha feito na vida, o diretor acredita que todos nós humanos, imperfeitos pela própria natureza, merecemos uma segunda chance – sejam quantas segundas chances forem preciso.
Jacques Audiard – como a maioria de nós – ainda tem esperança no ser humano, apesar de tudo. Sem essa esperança, sinceramente, todos nós já teríamos desistido... A crença na capacidade de superação e adaptação frente aos dissabores da vida é uma marca registrada de Ferrugem e Osso. Em algum momento do filme podemos nos indagar porque Stéphanie insiste na relação com Ali. Atrás daquela aparência tosca, ela consegue enxergar um bom coração, um ser humano que pode dar o apoio que ela precisa. Mas a relação entre os dois é uma troca. Ali precisa dela também. Fica evidente na cena em que praticamente derrotado por um rival superior, a presença de Stéphanie, a sua simples presença física, seu olhar, o faz capaz de dar uma reviravolta e vencer. Mas Ali não reconhece completamente o valor dessa relação. Somente ao final, quando a possibilidade de perder o seu filho faz o seu mundo desabar, ele irá se render. Muitas pessoas consideram clichê e ficam insatisfeitas com o final feliz que o filme proporciona, dizendo inclusive que o diretor e roteirista não sabiam como terminá-lo. Mas acredito que ele é condizente com a proposta do filme.
Ferrugem e Osso, assim como O Profeta, não tem uma narrativa padrão. Não há uma linha melodramática nem tampouco é pontuado por cenas enfatizadas de um ponto de vista a marcá-las com uma trilha sonora imponente. Tudo é muito natural e corriqueiro. Mas algumas cenas se destacam por si, por sua poesia visual, como na cena em que Stéphanie ensaia com os braços os movimentos de comando com que adestrava as baleias, ou quando se comunica com uma delas através do vidro. Neste momentos, e no equilíbrio de interpretações que consegue de Marion Cottilard – basicamente expressando sua tristeza, angústia ou insatisfação somente pelo olhar – e Mathias Schoenaerts, Jacques Audiard prova o seu valor na direção, merecendo os elogios obtidos pelo filme.