Síntese de tudo
por Francisco RussoPor 20 anos, o diretor Terrence Malick se manteve afastado do cinema. Personalidade enigmática graças ao seu lado arredio junto às câmeras, ele construiu sua reputação com apenas dois filmes: Terra de Ninguém (1973) e Cinzas no Paraíso (1978), ambos premiados. O hiato chegou ao fim com Além da Linha Vermelha, vencedor do Festival de Berlim 1998 e indicado ao Oscar de melhor filme no ano seguinte. Apenas a partir deste trabalho é que se pôde de fato perceber a assinatura cinematográfica de Malick, seja pela sua característica fotografia em tom etéreo ou pela recorrente reverência religiosa, inserida como subtexto. Diante deste recente retrospecto, com seis filmes já lançados nesta nova fase e mais dois a estrear ainda em 2017, não chega a ser uma surpresa o formato adotado pelo diretor em Voyage of Time: Life's Journey. Na verdade, ele é exatamente aquilo que se espera do Malick atual, com prós e contras.
Extremamente ambicioso, o documentário tem por objetivo apresentar, em 1h30, um resumo de tudo o que aconteceu na história. Preste atenção: não se trata apenas da existência do ser humano, mas de tudo mesmo, do Big Bang ao apocalipse. É claro que, com Malick como diretor, tal iniciativa é um prato cheio para sua narrativa repleta de simbolismos e divagações - e é exatamente isto que ele entrega ao espectador.
Narrado em tom declamatório por Cate Blanchett e com diversas pausas dramáticas, Voyage of Time tem início com a tela preta: trata-se do nada, o absoluto vazio que precedeu tudo. A partir de imagens computadorizadas, Malick segue - em ritmo acelerado - pela formação do universo, do Sol, da Terra e, é claro, da vida. Se as falas pontuais de Blanchett revelam a costumeira reverência ao criador, aos poucos o espectador é capaz de compreender os códigos implementados na construção deste quebra-cabeça. O principal deles tem a ver com algo até então inédito na carreira do diretor: a alternância no formato de tela.
É interessante notar como Malick trabalha questões envolvendo a natureza e a sociedade moderna. Se o homem e sua complexidade surgem apenas no formato fullscreen, de tela mais estreita, ao ciclo natural da vida é reservado o espaço nobre, com tela cheia. Tamanha alternância é bastante utilizada na meia hora inicial do longa-metragem, de forma a imediatamente glorificar o ritmo normal da existência. O que não significa um certo desprezo ao homem, já que o próprio também conquista seu espaço ao se adequar à proposta conceitual implementada.
Tal iniciativa é ainda acompanhada pela beleza das imagens da natureza, muitas vezes buscando a exuberância e o inusitado dentre as espécies existentes. É neste aspecto que ganha importância a parceria realizada com o IMAX Entertainment Group, produtora do longa-metragem e especialista em exibir imagens visualmente deslumbrantes, devido às características de suas salas. Mais do que explorar tal tecnologia, Malick deseja se apropriar dela para potencializar a mensagem que deseja transmitir, de culto ao natural. Seguindo a mesma linha, só que de forma inversa, o diretor intencionalmente apresenta as cenas em fullscreen com uma fotografia desgastada, sem o mesmo brilho, para minimizá-las perante o que está ao redor.
É através desta narrativa imagética empregada por Malick que Voyage of Time ganha um certo brilho, aliada à trilha sonora solene e ao meticuloso trabalho de edição, de forma a escolher a imagem certa para cada momento. Se é óbvio que o documentário não consegue trazer em detalhes toda a existência, é através de seus simbolismos que se pode observar o esforço de um verdadeiro criador em trazer poesia a partir de imagens aparentemente dispersas.
Necessariamente contemplativo, Voyage of Time pode ser considerado a síntese precisa daquilo que Terrence Malick acredita como cinema - o que, dependendo do seu grau de identificação com o estilo do diretor, pode ser um elogio ou uma tremenda crítica. Ainda assim, trata-se de um filme bastante interessante pela forma como seus códigos foram criados e implementados, buscando servir a uma identidade cinematográfica já estabelecida que, mais uma vez, segue sua coerência narrativa e estética.
Filme visto no CPH:DOX, em março de 2017.