Não há descanso para os criminosos
por Renato FurtadoUm jogo de futebol é perturbado pela chegada de um helicóptero preto, uma aeronave ameaçadora que interrompe o cotidiano de uma periferia sul-americana. Policiais ocupam vielas e ruas conforme a rotina é esvaziada e a população esconde-se em suas casas, observando a incursão da tropa comandada por Santiago "Pope" García (Oscar Isaac), silencioso agente cuja trilha sonora mental é uma eterna playlist composta pelo heavy/thrash metal de bandas como o Metallica e o Megadeth. Mas logo a clássica canção headbanger "For Whom The Bell Tolls" e a voz grave do cantor James Hetfield são substituídas pelo suinge de um reggaeton, e pela entonação sensual de uma estrela pop local. E, então, um míssil, um pesado tiroteio, uma explosão, o sangue e a violência, que confundem e ocupam o silêncio da vida comum.
A guerra deixa marcas na biologia e na fisiologia do ser humano, sentença esta proferida pelo veterano William “Ironhead” Miller (Charlie Hunnam) que muito bem poderia ser o lema oficial de Operação Fronteira, este drama de guerra e ação do diretor e roteirista J.C. Chandor que expande as temáticas investigadas pelo cineasta no decorrer de sua carreira, agora por um viés um tanto quanto megalomaníaco. No entanto, por maior que seja o escopo deste longa, patrocinado por um mais do que respeitável orçamento da Netflix, a obra — assim como Margin Call - O Dia Antes do Fim, Até o Fim e O Ano Mais Violento — é uma tragédia contemporânea, na qual seus protagonistas não podem escapar de seus destinos e da espiral de desventuras que toma conta de suas vidas, por mais que lutem pelo contrário.
Lutar, aliás, é a palavra de ordem de Operação Fronteira: seja no pós-serviço militar, seja na missão clandestina no centro deste projeto — que, a propósito, está em produção há anos, tendo sido tocado, a certa altura, pela dupla de Guerra ao Terror, Kathryn Bigelow e Mark Boal —, os cinco protagonistas batalham por suas sobrevivências. Aqui há, portanto, um paralelo entre a existência civil e a trajetória paramilitar iniciada por muitos soldados após quitarem suas dívidas, empregatícias e de honra, com seus exércitos: de um modo ou de outro, muitos veteranos são esquecidos por seus Estados — depois de terem defendido suas pátrias, retornado ao lar como "heróis", experimentado as atrocidades da guerra e desenvolvido transtornos pós-traumáticos —, e precisam sustentar suas famílias e a si mesmos.
É neste contexto de abandono que o plano, consequentemente, é esquematizado: operando nos limites da lei, Pepe agrupa seus antigos irmãos de armas para derrubar um poderoso narcotraficante da Tríplice Fronteira que une Brasil, Colômbia e Peru e, de quebra, surrupiar o dinheiro do criminoso, solucionando os imbróglios financeiros de Miller, Tom Davis (Ben Affleck), Francisco Morales (Pedro Pascal) e Ben Miller (Garrett Hedlund). Se a orquestra executar a música planejada à perfeição, no entanto, os cinco cometerão pelo menos “um assassinato e um roubo a mão armada”, como anuncia o personagem de Affleck, frase esta que, por sua vez, simboliza e faz convergir os vencedores elementos de Operação Fronteira — cujo tratamento final assinado por Chandor toma como base um roteiro prévio de Boal.
Por mais que glorifique paradoxalmente a guerra em seus desgínios para examinar as consequências nefastas da mesma — como fazem, via de regra, os longas anti-guerra —, Chandor estrutura consequências reais e dramáticas para os atos de seus protagonistas enquanto constrói, pacientemente, sua análise filosófica sobre a zona cinzenta da moral, legislação e ética — a diferença, desta vez, é que o realizador faz isso com o apoio de sequências de combate perfeitamente concretizadas, cortesia da competente fotografia naturalista de Roman Vasyanov (Marcados para Morrer) e da precisa e objetiva montagem de Ron Patane (O Lugar Onde Tudo Termina). Desse modo, por mais que o roteiro em si siga as convenções narrativas mais básicas, o diretor sentencia: não há descanso para os criminosos.
Contudo, destrinchar resultados não é o único mérito conceitual de Chandor, que também desfia pontuações marcantes no que se refere à importância da comunidade: em tempos cada vez mais individualistas como estes nos quais vivemos, Operação Fronteira capitaliza sobre o bom e velho clichê da irmandade militar, e é só através da união, a despeito de seus desejos particulares e de suas ganâncias individuais, que os cinco soldados deste drama conseguirão sair da perigosa sinuca-de-bico na qual se meteram. E há ainda, evidentemente, uma crítica nada sutil às invasões perpetradas pelos Estados Unidos no território de países menos poderosos, atos que ferem a soberania de nações alheias com o antigo e nocivo pretexto de "levar a democracia" — a História prova as contradições desta política externa.
Por outro lado, os méritos de Operação Fronteira também apontam para sua falha crítica: apesar de ser focado na humanidade de seus personagens, o drama não os desenvolve o bastante. Em Margin Call - O Dia Antes do Fim, por exemplo, Chandor fazia com que suas criações servissem ao contexto da crise econômica de 2008, mas já em Até o Fim e em O Ano Mais Violento, o cineasta mudou de rumo e inverteu a equação: o contexto, a trama em si, tornou-se uma ferramenta para estudar os seus personagens. Em Operação Fronteira, o realizador anuncia a mesma abordagem de seus últimos filmes, mas não a leva a cabo: para um longa de conjunto, "coral", as dimensões internas e espirituais dos protagonistas não recebem a devida atenção, e se perdem em meio às sequências de ação.
Talvez fosse uma questão de, por exemplo, diminuir o número de personagens principais — suas tramas pessoais poderiam, inclusive, ser matéria de uma minissérie —, ou até mesmo de retomar a estrutura de sua obra de estreia; de qualquer forma, Chandor acaba trabalhando aqui mais com estereótipos do que com personagens tridimensionais, a despeito dos largos minutos iniciais gastos para estabelecer o background de cada um deles. Como são relativamente rasos, os soldados não oferecem muita substância para Isaac, Affleck, Hunnam, Pascal e Hedlund, cujas performances são apenas suficientes para impulsionar a narrativa. Isso faz, em suma, com que algumas das potencialidades dramáticas de Operação Fronteira sejam esgarçadas a ponto do entretenimento puro suplantar em demasia a reflexão.
O que, por si só, não é um problema, é claro: somente faz com que o drama não atinja o patamar que, a julgar pela carreira de Chandor, poderia alcançar — afinal de contas, a dimensão política da questão do narcotráfico, e até mesmo das problemáticas internas dos países sul-americanos, servem como mero pano de fundo à execução em primeiro plano do realizador. Entretanto, no fim do dia, considerando o complicado histórico de produção de Triple Frontier (título original), anunciado originalmente nos idos de 2010, o resultado final é mais do que saudável. Por mais que seja o filme menos bem-sucedido de seu realizador, Operação Fronteira é, ainda assim, um drama de guerra sólido e muito bem produzido, que traz de volta um diretor e roteirista que já estava há muito tempo — cinco anos, precisamente — afastado das telonas.