Mentira pelo bem da família
por Taiani MendesFigura controversa da história do entretenimento, considerado um dos pais do circo moderno, P.T. Barnum foi empresário visionário que fez fama e fortuna apresentando fraudes ao respeitável público. Se você é daqueles espectadores que ficam profundamente aborrecidos quando produções cinematográficas inspiradas em fatos reais tomam grandes liberdades com relação aos acontecimentos, fica o aviso: O Rei do Show é uma versão bem romanceada da trajetória do showman, aqui um sonhador de origem pobre interpretado com o conhecido carisma, canto agradável e boa dança por Hugh Jackman, em performance que apaga Os Miseráveis da memória.
O amarradinho e bastante previsível roteiro de Jenny Bicks (Sex and the City, The Big C, Rio 2) e Bill Condon (Chicago, Dreamgirls – Em Busca de um Sonho) usa o famoso nome do personagem e as lendas a respeito de seu polêmico inovador empreendimento para narrar um conto de ascensão social e realização de desejos que passa por acertos e erros, lições, punições e transformações educativas embaladas por canções pop. Em seu primeiro longa-metragem, o diretor Michael Gracey causa boa impressão pela segurança de veterano, estilo e bela mise-en-scène - especialmente nos trechos musicais e notável desde a empolgante sequência de abertura.
O início no mundo da imaginação é a afirmação de que o norte da trama é a fantasia, o que, no entanto, não quer dizer que o Barnum do musical é um anjo generoso, protagonista imaculado. Aproveitador parcialmente honesto, o “Príncipe do Embuste” no caso aumenta, mas não inventa. Malandragem, egocentrismo, ambição sem limites e desprezo pelos sentimentos alheios estão entre suas características, obviamente suavizadas de acordo com o tom familiar do filme.
Os relacionamentos em primeiro plano representam as mudanças de interesse de P.T.. Enquanto só tem olhos para a amada Charity (Michelle Williams), sua rasa parceira desde a infância, ele vive pela busca de “alcançar as estrelas” e mudar de vida honestamente; o bromance com o nobre Phillip Carlyle (Zac Efron, que não se mostra à altura de Jackman nos talentos artísticos) é o flerte com a alta sociedade; e o caso velado com a diva Jenny Lind (Rebecca Ferguson) o revela completamente cego pelo reconhecimento e novo status. Há ainda um crítico recorrente, cuja participação não chega a render pela péssima interpretação de Paul Sparks, destoante do elenco.
E as estrelas do espetáculo nisso? Estão sempre lá, como coadjuvantes, à margem. O longa-metragem, assim como o show, gira em torno do “rei” Barnum e poucos são os freaks nomeados ou com direito a falas. A questão racial é inserida no mesmo balaio sem maiores explicações e o próprio show mal é capaz de ser compreendido em sua integridade, picotado em flashes insuficientes. Ao menos um número exclusivo tais personagens têm, com a empoderadora "This is Me".
Ao lado de "The Greatest Show" e "Never Enough" a canção forma a trinca de destaque da trilha sonora original composta por Justin Paul e Benj Pasek (vencedores do Oscar por La La Land – Cantando Estações). Também bonita, "Rewrite the Stars" acaba sendo ofuscada pelo vigor físico e estripulias dos personagens de Efron e Zendaya nas alturas. Em termos vocais Williams é a mais limitada e Ferguson é a única dublada por uma cantora profissional, Loren Allred. Compreensível, considerando que Jenny Lind, o Rouxinol Sueco, é apresentada como a maior cantora do mundo. Transmitindo ao espectador o efeito de encanto que a artista causa em P.T. Barnum, quando ela entra em cena é como se tudo ao redor sumisse e quando solta a voz o tempo parece parar para admirar.
O logo vintage da 20th Century Fox sugere viagem no tempo, porém, apesar do século antigo, o que invade a tela é um produto original (no sentido de não ser remake, nem adaptação, algo especialmente louvável considerando o gênero e as produções que dominam o mercado hoje) cheio de frescor. O slow motion característico dos filmes de ação acrescenta aos números musicais e as coreografias são estimulantes – não tanto depois que se nota que são basicamente os mesmos passos repetidos com pequenas variações.
Ainda que o circo não pegue fogo metaforicamente, O Rei do Show é um bom escape energizado e oferece o espetáculo prometido com ingenuidade que lembra musicais clássicos. Não existem as referências (ou a química do par) de La La Land, tampouco as inovações de Moulin Rouge – Amor em Vermelho, ou mesmo os hits de Mamma Mia!, mas há o necessário para que a magia aconteça e o suficiente para que o próximo trabalho do diretor de primeira viagem seja aguardado com expectativa.