Ondas do Destino estrutura-se através de uma divisão capitular, onde cada novo capítulo se inicia com um plano paisagístico do local onde se passa a história do filme. Existe um tratamento de imagem nestes planos que, ao imprimir um aspecto de pintura ao enquadramento, funciona como uma espécie de abertura idílica para o que se sucede. Estilisticamente, esse recurso encontrará diversos ecos na narrativa, especialmente na sua dialética com a mise-en-scène mais crua de Lars Von Trier.
O filme segue alguns supostos preceitos do Dogma 95, como a câmera na mão, uma predominância por planos fechados, sem grande preocupação em localizar os personagens dentro do espaço, além de iluminação natural. A decupagem dentro das cenas é marcada por jump-cuts e notáveis variações de iluminação. O filme não se dedica em articular um realismo a partir dos padrões estabelecidos de continuidade narrativa. Mesmo assim, não foge de uma abordagem naturalista, pois renega maneirismos e concepções demasiadamente artificiais (com exceção dos planos de abertura anteriormente citados).
Trier consegue isso através de recursos muito marcantes em sua filmografia. O diretor amplifica o drama através da encenação crua. A câmera da mão, os cenários e figurinos naturalistas e os demais recursos de decupagem já citados trabalham num tom de desorientação, quase documental por seu caráter livre e de enganosa falta de controle, que busca capturar a variada natureza de seus personagens. Existe aqui a ingenuidade que beira o divino, como também a mesquinhez, a inveja e a frieza, aqui conectados por uma sociedade fundamentalista. A ausência do romantismo imagético, mesmo dentro de uma trama que parece pedir por tal abordagem, se justifica pela necessidade de desenvolvimento de seus personagens na ambiência de uma sociedade austera.
Não me parece ser acaso, ou mera homenagem cinéfila, que o fato da cena inicial do filme remeta tanto à Paixão de Joana D'Arc. Von Trier não busca reencenar formalmente o filme de Dreyer nesta sequência, mesmo aqui sua decupagem é demasiadamente livre em comparação com o formalismo de Carl Theodor, mas há uma sugestão inicial da posição de mártir da protagonista, em oposição ao fundamentalismo intransigente dos anciões. O cineasta consegue, em uma pequena cena que se resume à planos e contraplanos fechados dos personagens, já dizer muito sobre as relações estabelecidas naquele grupo, além de anunciar, premonitoriamente, o destino de Bess.
Meu grande problema com alguns trabalhos de Von Trier jaz no seu exagero ao buscar o choque pela crueza de suas narrativas. Enquanto, estilisticamente, todos os seus filmes são muito eficientes na amplificação dos ambientes, o diretor comete equívocos ao buscar resoluções que transparecem uma maldade gratuita, que escapa da diegese para ressaltar apenas como sua visão de mundo pode ser extrema. Na minha visão, qualquer busca de extremismo unicamente pelo extremismo no cinema é apenas uma variação do fetiche que muito se observa em certas composições estilísticas de diretores vistos como "autores" por uma cinefilia de manual.
Em Ondas do Destino, Trier não se salva completamente desse equívoco. A cena em que Bess chega, desorientada, à igreja, seguida da perseguição que sofre pelas crianças do vilarejo carrega, ao mesmo tempo, uma retórica (da qual o cineasta consegue renegar muito bem no restante do filme) e um choque que soa gratuito na ambiência narrativa.
Ainda assim, o restante da obra lida muito melhor com a sua unidade. É fácil imaginar como um Trier menos inspirado poderia ter lidado com a cena do desfecho de Betts. Ao invés de se alongar numa maldade cênica que só provaria os pontos fracos do filme, o final da protagonista é conduzido com o devido respeito pelos méritos narrativos construídos pelo longa, funcionando de modo efetivo como a sugestão do que seria concretizado em seu epílogo de natureza idílica.
Acaba, portanto, sendo um filme que traz muitos aspectos do que veríamos como o melhor e o pior de Von Trier nos anos seguintes de sua carreira. Seus anjos e demônios estão em luta aqui. Enquanto o primeiro busca a unidade narrativa e estilística digna de sua trama, o último tenta forçar seu espaço no choque cênico. Felizmente, quando se contempla a atitude geral do cineasta aqui, os sinos da inspiração cinematográfica são muito bem ouvidos.