Todo mundo sabe que a literatura possui 2 formas de expressão: a prosa e a poesia. Pouca gente lembra que o cinema também pode assumir estas 2 maneiras de se expressar. Desta maneira, podemos dizer que o diretor Wang Kar Wai é um dos maiores poetas do cinema em atividade, e seu último filme, O Grande Mestre, embora tenhas falhas como narrativa (prosa), é soberbo em termos de poesia visual.
O filme pode frustrar ou surpreender espectadores, dependendo das expectativas de cada um. Os adeptos e apreciadores das artes marciais, que foram assisti-lo imaginando acompanhar a trajetória do mestre Ip Man sairão decepcionados, porque esta não é a intenção do diretor. Aqueles que forem assistir com um pé atrás, acreditando que todo filme sobre artes marciais é uma pancadaria só, irão se surpreender com um filme visualmente espetacular, que na verdade deixa pouco espaço para as cenas de luta, mas que quando acontecem são coreografadas como uma dança e montadas e enriquecidas de planos em detalhe, que mais se assemelham à linguagem usada nos filmes musicais - há no filme uma meia dúzia de cenas de luta todas antológicas, mas o destaque fica por conta do confronto entre Gong Er e Ma San em uma estação de trem.
Na verdade, aqueles que já conhecem filmes anteriores do diretor, como Amor à Flor da Pele, Um Beijo Roubado, conseguirão identificar os temas e o estilo próprio de Wang Kar Wai, disseminados em uma história que tem o tema do kung-fu apenas como pano de fundo. As marcas registradas do diretor estão lá: fotografia deslumbrante abusando das cores saturadas, o cuidado da produção com cenários e figurinos, o ritmo e a linha narrativa. O que é evidente é que ao diretor os temas que realmente interessam neste filme em particular são a passagem do tempo e a constatação que as coisas mudam - inclusive o amor que sentimos pelos outros, a inexorabilidade da morte, a renúncia, as perdas, o arrependimento do que foi feito e do que não foi feito - temas recorrentes na obra da maioria dos grandes poetas da literatura.
Após um início um tanto quanto confuso, o filme engrena sua narrativa, alicercada na passagem das estações do ano. Assim, anos se transformam em meses e dão a impressão de haver passado num piscar de olhos - a sensação que é compartilhada por todo ser humano. A "primavera" da vida como Ip Man chama seus primeiros 40 anos, é marcada pela chuva, e o "inverno" - os anos difíceis, com a invasão da China pelo Japão, a perda de sua família e seu envelhecimento, são marcados pela neve, em imagens belíssimas.
Os orientais, assim como os norte-americanos, fazem seus filmes voltados basicamente para agradar seu público doméstico, por isso a história de Ip Man, seus mestres e seus discípulos deve ser bastante difundida entre os asiáticos, dispensando maiores detalhes para o público-alvo, o que pode deixar um ocidental "boiando" ao tentar compreender totalmente a história que acompanha. Para nós, do outro lado do mundo, resta apreciar e se encantar com a beleza visual e poética de O Grande Mestre, seguramente um dos filmes mais plásticos e bonitos que você poderá encontrar na produção recente do cinema mundial.
Não posso deixar de comentar que lá pelo meio do filme me ocorreu como o diretor Wong Kar Wai foi influenciado pelo visual rebuscado e barroco de diretores ocidentais que ficaram famosos na verdade por haver renovado o gênero western, mais especificamente Sam Peckinpah e Sergio Leone (dos quais identifiquei várias técnicas estilísticas neste O Grande Mestre). Até a trilha sonora parecia ter sido composta por Ennio Morricone, habitual colaborador de Leone. Algo que não é totalmente esdrúxulo, pois o filme de arte marcial - mais especificamente o "filme de samurai" - seria mesmo uma versão oriental para o western americano, tanto que os 2 gêneros dialogaram durante muito tempo: Kurosawa foi adaptado para o velho oeste (Os Sete Samurais virou Sete Homens e um Destino e Yojimbo virou Por Um Punhado de Dólares) e seu famoso Rashomon é visto por muitos como uma adaptação de temas dos westerns de John Ford. Para confirmar minha tese, as últimas cenas do filme são acompanhadas pelo trecho do tema musical composto por Morricone para Era Uma Vez na América, de Leone.