A tentação
por Francisco RussoNão é de hoje que Hollywood varre o planeta em busca de ideias vindas de outras cinematografias que possam, cada uma à sua maneira, ganhar versão local. Trata-se de uma necessidade da própria indústria cultural, que precisa de novos produtos que façam a roda girar - daí o número cada vez maior de refilmagens, sequências e reboots. Diante de tamanha voracidade, não é de se estranhar que os animes se tornem alvo, ainda mais devido à popularidade entre os conhecedores da animação japonesa. O problema é que o cinema norte-americano, ao menos por enquanto, não aprendeu a decifrá-los para a sua linguagem própria e, com isso, tem entregue filmes não só pasteurizados, como absolutamente descartáveis.
Assim como aconteceu com A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell, o novo Death Note nada mais é do que uma versão pálida que pouco se aproxima da complexidade do original, por vários fatores. Um deles, escancarado, é a opção em condensar a história de forma a privilegiar a ação em detrimento da reflexão, o que omite todo o interessante subtexto existente no anime sobre o conceito de justiça ao encarnar o trinômio juiz/júri/executor, passando ainda sobre os limites éticos sobre o que fazer ao ter tamanho poder. Com isso, a existência de um livro que permite a morte imediata caso o nome de alguém seja nele escrito torna-se mera desculpa para assassinatos sanguinolentos, onde a violência gráfica substitui o peso moral existente no texto original. Obviamente, com bem menos impacto.
Tal decisão talvez explique a escolha de Adam Wingard como diretor. Veterano do terror, seria ele o responsável em aproximar o universo sombrio do anime para uma linguagem mais palatável, baseada no visual em detrimento da inteligência a partir dos diálogos e relacionamentos. Entretanto, mesmo diante de tal caminho questionável, Wingard fracassa devido à mão pesada nas cenas dos acidentes e também pela forma como Ryuk, o shinigami dono do caderno, é apresentado. Se visualmente o personagem jamais convence, devido à forma canhestra que o torna uma espécie de boneco de Olinda com mãos e pernas, o subtexto em torno da existência dos shinigamis, que remete à relação entre homens e deuses na Grécia antiga, é completamente descartado. Mais ainda: aqui, Ryuk é um mero incentivador de novos assassinatos, abandonando o posto neutro que, no anime, lhe trazia o fascínio da contemplação do comportamento humano. Ou seja, mais uma vez, história pasteurizada.
Entretanto, o maior dos crimes cometidos vem com a personagem Mia Sutton (Margaret Qualley, fazendo o possível). Em uma manobra absolutamente sexista, o roteiro transfere a ela toda a responsabilidade existente no personagem principal, Light Turner (Nat Wolff, limitadíssimo), acerca da morte de inocentes - dentro de sua visão de mundo, é importante ressaltar. Com isso, Light torna-se uma espécie de "mocinho" dentro da história, tentado pelo pecado ofertado - e por vezes exigido - pela própria namorada. Ou seja, o filme entrega uma versão recauchutada da história de Adão e Eva, onde o homem "puro" é envenenado pela mulher de forma a expulsar ambos do "paraíso" - leia-se, a impunidade. Para completar, não só a culpa como o castigo recai nela - e somente nela.
É inacreditável que, em pleno 2017, algo do tipo ainda aconteça, ainda mais quando o material original diz, claramente, que foi escolha de Light matar, também, inocentes que representem perigo para si mesmo. Há ainda em Death Note vários outros equívocos acerca da caracterização de personagens cruciais, do tom histriônico de Light à forma banal como o cerebral L (Lakeith Stanfield) é apresentado, que os apequenam demais. Isto sem falar da necessidade típica do cinema norte-americano em justificar desvios de conduta a partir de motivações psicológicas, como a "justificativa" do comportamento arredio de Light ao fato da mãe ter sido morta, tempos atrás. No anime, onde as motivações são bem fundamentadas com base em conceitos morais e de justiça, ela não só vive como tem também uma filha.
Além de incapaz de compreender o potencial do material que tinha em mãos, este novo Death Note ainda comete incoerências graves dentro de sua própria adaptação, que o prejudicam seriamente tanto como filme derivado quanto em uma análise sem qualquer comparação prévia. Mal dirigido, irregular e com uma direção de arte canhestra, o único acerto de fato é a escolha de Willem Dafoe como a voz de Ryuk, pela sonoridade ardilosa que consegue dar ao personagem.