A soma de todos os medos
por Bruno CarmeloO primeiro filme da nova franquia It - A Coisa precisa pôr em prática uma quantidade imensa de tarefas. A trama de terror deve apresentar a personalidade de sete crianças diferentes, cada uma com uma relação familiar e um conjunto de medos muito específicos. Também é necessário desenvolver o assustador palhaço Pennywise, capaz de mudar de aparência e modo de ataques, além de justificar o histórico de desaparecimentos na cidade de Derry, detalhar a apatia dos adultos sobre a questão, criar o contexto de bullying na escola, trabalhar relacionamentos amorosos e ainda desenvolver um buddy movie eficiente.
Diante dos desafios, é impressionante como o resultado cumpre esses objetivos com tranquilidade. O diretor Andrés Muschietti criou uma montanha-russa de gêneros muito bem articulados: as cenas de terror são criativas e intensas, enquanto as cenas de comédia despertam gargalhadas, e os momentos do Clube dos Otários funcionam como um excelente filme adolescente, como não se via, de fato, desde os anos 1980. O cineasta brinca habilmente com os nervos do público: logo após uma tirada engraçada, um momento aterrorizante aparece de surpresa; no final de um episódio sangrento, um dos garotos lança uma frase cômica para desestabilizar o espectador.
Esta adaptação da obra clássica de Stephen King segue por rumos inesperados, mesmo para quem conhece os conflitos da história. It - A Coisa ora trabalha com cenas explícitas, ora prefere a sugestão; em alguns momentos, soa bastante realista (a agressão a Ben), para depois investir puramente na fantasia (a casa abandonada). A transição torna-se possível pela configuração particular do vilão. Devido à capacidade de adquirir a “aparência dos maiores medos” de suas vítimas, ele soa fantasista, irreal, mas seus dentes e suas garras ferem de modo palpável. A “coisa” combina o funcionamento de um fantasma e de um assassino em série, com resultados potentes.
“Eu não sou real o suficiente para você?”, o palhaço grita em determinada cena, em tom de ameaça. Quer algo mais real que os nossos pesadelos? Pennywise é perverso, contentando-se na maioria das vezes em deixar seus alvos em pavor constante ao invés de matá-los – por definição, ele poderia ser considerado um terrorista. Este é um personagem imprevisível, multifacetado, e muito bem interpretado por Bill Skarsgaard, numa combinação de sedução e loucura, algo ideal para se comunicar com crianças entediadas de uma pequena cidade interiorana.
Muschietti contribui para o sombrio realismo ao apresentar cenas chocantes de violência infantil, bem fortes para os padrões hollywoodianos. “Isso é real o suficiente para você?”, parece dizer também o cineasta, em coro com seu personagem. Ao mesmo tempo, o diretor diminui os exageros de seu filme anterior, Mama (2013), e cria uma série de cenas muito elegantes, explorando a potência das câmeras subjetivas e do espaço fora do enquadramento. Momentos no banheiro de Beverly (Sophia Lillis) ou uma briga perto do poço são editadas com máxima expressividade, sem revelar mais do que o necessário. Apenas os efeitos sonoros incomodam, eventualmente, pela construção artificial da tensão.
O elenco foi muito bem escolhido e dirigido. Este grupo de minorias – um gordo, um negro, um judeu, um garoto sempre doente, uma garota sexualmente ativa – se ajuda mutuamente, sem ser tratado como vítimas pelo roteiro. Finn Wolfhard é explorado como alívio cômico, quase excessivamente, enquanto Jaeden Lieberher encarrega-se de um drama discreto e eficaz. Talvez a melhor surpresa seja Sophia Lillis, a única garota do grupo, capaz de transmitir uma notável gama de sentimentos dentro de uma mesma cena, apenas com a força do olhar.
Para completar o cenário, It - A Coisa constrói com maestria a atmosfera dos anos 1980 numa pequena cidade de classe média-baixa americana. Sem o saudosismo de séries como Stranger Things, que acumulam referências e citações, o filme apresenta o espectador a cenários e figurinos verossímeis, mas que não chamam tamanha atenção a si mesmos. O uso de música da época é comedido, já que o foco de Muschiette encontra-se na representação dos abusos e da falta de perspectivas na cidade de Derry.
Por isso, os pais das crianças tornam-se figuras tão assustadoras quanto o palhaço, convergindo na representação do perigo da passagem à fase adulta. O medo das crianças pelo palhaço se une aos medos diários de bullying, racismo, estupro, intolerância religiosa e outras agressões bem retratadas na história. Pennywise sintetiza a ideia de que o mundo é incorrigivelmente hostil. Por isso, os amigos só têm chances de sobrevivência caso permaneçam unidos – uma mensagem simples, porém mais subversiva neste cenário socioeconômico do que as tradicionais lições de amor à família ou amor romântico.
It - A Coisa é um filme que exige sacrifícios de personagens, de crenças no futuro, de idealizações sobre pais e instituições - todos falhos ou ausentes nesta história. O imaginário de que “qualquer um pode ser feliz caso se esforce de verdade” é brutalmente destruído pelas perspectivas cinzentas do roteiro. Os adultos já se perderam, e talvez não tenham solução. Cabe aos pré-adolescentes, que retornam em 2018 na sequência do filme, trazer alguma mudança estrutural ao cenário. Enquanto isso, precisam combater a representação máxima do perigo adulto, Pennywise, o palhaço dançante, capaz de aparecer num programa de televisão, na voz de uma doce apresentadora infantil, incentivando jovens a assassinarem brutalmente seus próprios pais.