Dispor de si, não importa o fim
A cumplicidade, a mais pura cumplicidade é a liga que leva as pessoas a se revelarem uma para a outra, se influenciarem profundamente, adensarem seus desejos em comum, e construírem suas cenas conjuntas particulares. Casais podem alcançar níveis de companheirismo e admiração mútua que os levem a se amar intensa e verdadeiramente. Amor, não paixão. O afeto amigo, cuidadoso, dedicado, a vontade de apoiar o outro e ser a base para suas realizações. Os pintores dinamarqueses Einar e Gerda Wegener, que viveram na Europa no início do século XX, alcançaram esse amor. Tornaram-se extremamente cúmplices. Ele quis chegar a um ponto nunca tentado pelos seres humanos e que surgia como possibilidade em sua época, ela levou o desejo dele a ponto de ser não apenas o dela própria, mas uma tentativa artística de ambos.
Em "A garota dinamarquesa" nos é apresentado um casal apaixonado, amigo, que faz da sua vida a dois uma sucessão de momentos de prazer, experimentação, romance, alegria, paixão ardente, de torcida profissional e artística mútua. Ambos pintores, Einar já relativamente bem sucedido como artista, enquanto Gerda busca alcançar reconhecimento similar ao do marido. Conheceram-se muito jovens, quando alunos da "Royal Danish Academy of Fine Arts" em Copenhague na Dinamarca. Casaram-se em 1904, ele com 22 e ela com 19 anos. Feitos um para o outro, um homem que àquela altura já havia idealizado ser mulher e que foi se tornando loucamente aficcionado nesse seu desejo e uma lésbica.
Com uma interpretação fora de série de Eddie Redmayne (Einar) e também magnífica atuação de Alicia Vikander (Gerda), o filme consegue levar os espectadores a sentirem toda dor sofrida por ambos no processo de decisão do pintor de tentar se sentir uma mulher e passar por cirurgias para amputar sua genitália e construir artificialmente uma mimese de órgãos sexuais femininos. Foi algo como se o casal tivesse se unido para dar vida a uma obra de arte. Alguns anos antes de Einar e Gerda tentarem criar Lili, Oscar Wilde sabiamente afirmou: "A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida".
Tão emocionante e extremamente gratificante quanto as atuações dos atores principais é a fotografia do filme. O diretor de fotografia Danny Cohen realizou algo fenomenal, algo realmente raro e que nos impressiona, as cenas parecem ser construídas de quadros, pinturas que se sucedem. Verdadeiramente enchem os olhos e nos desafiam a encontrar uma única entre elas que não se assemelhe a um belo quadro e nos transmita as emoções nela contidas. Nada mais apropriado para uma narrativa sobre parte da vida de dos pintores. Cohen também atuou na mesma função em outros longas, destaque para "O discurso do rei" e "Os miseráveis", mas foi com "A garota dinamarquesa" que ele alcançou o nível de esplendor.
Tom Hooper fez um trabalho excepcional, também dirigiu os dois famosos longas citados acima, mas é com a história de Einar e Gerda que ele consegue fazer com que nos identifiquemos profundamente com a tristeza e a perturbação do casal Wegener. Desde que assisti "A garota dinamarquesa", fico me perguntando como Hooper filmaria a história de uma pessoa com Transtorno de Identidade de Integridade Corporal (TIIC).
Crítica disponível no meu site: http://marcospenajr.com/dispor-de-si-nao-importa-o-fim-dispose-of-yourself-no-matter-what-for-2/