Baseado no livro de Charles Brandt, que trata da história real de Frank Sheeran, O Irlandês é uma grande obra-prima de Martin Scorsese e, principalmente, uma homenagem a três grandes atores que marcaram época: Al Pacino, Joe Pesci e Robert De Niro. Um tributo o qual pode render um Oscar a cada um devido à incrível performance destes senhores.
A grandiosidade desse encontro com um nível tão elevado de interpretação é possível graças à esplêndida direção de Martin Scorsese. É um trabalho de excelência, focado em passar a melhor experiência em tela ao espectador. Para isso, Scorsese preenche os 210 minutos mostrando toda a riqueza cinematográfica cabível em suas mãos. O design de produção e a fotografia são perfeitos. Já os diálogos densos, cômicos e dramáticos, geram momentos em que o silêncio constrange, em que um gaguejar entrega o espírito de um homem nas suas maiores culpas.
Joe Pesci parece ter recebido um agrado do Diretor devido aos serviços prestados atuando com personagens explosivos como em Os Bons Companheiros (1990) e em Cassino (1995). Como Russell Bufalino, ele transborda em talento ao fazer um mafioso respeitado, perspicaz, calmo e que busca na intermediação entre o Chefe e os demais o império da ordem nos negócios. Sua fala suave e pausada lembram um senhor querido e amável. Ele admira Frank Sheeran (Robert De Niro) pela família que tem e isso, de certa forma, os une muito, apesar de Peggy Sheeran (Anna Paquin), desde criança, sentir pouca empatia por ele.
Robert De Niro e Joe Pesci novamente juntos
Al Pacino interpreta Jimmy Hoffa, um líder sindical do setor caminhoneiro o qual mostra todo seu poder e influência entre sindicalistas e políticos. Idealista, Pacino dá show. Intransigente e teimoso, a relação com a perda de poderes e perseguições políticas faz dele um homem emocional que parece sempre estar a ponto de explodir. A relação com opositores o move como louco, uma vez amedrontado pela perda de poder. A fixação em ser pontual em encontros e reuniões são um incremento cômico ímpar e deixa Al Pacino à vontade em cena.
O que os dois personagens acima têm em comum mesmo vivendo em realidades tão distintas? A amizade com Frank Sheeran, o Irlandês. Íntima, próxima e que os une como um elo eterno. Quem diria que um dia Robert De Niro seria subordinado a Joe Pesci? Pois aqui, Scorsese faz essa troca”. Sheeran é o ponto fora da curva: caminhoneiro, entrega carnes para frigoríficos. Ao extraviar parte da carga para um restaurante, conhece Russell Bufalino e, posteriormente, Jimmy Hoffa. Ele é uma pessoa prática. Mantém a família sem necessidades graças ao trabalho. E trabalho solicitado ao Irlandês é trabalho cumprido, sem hesitações. Assim, estabelece confiança e respeito no triângulo formado.
De Niro é o fio condutor da história, inclusive pela narração em primeira pessoa (instrumento sempre utilizado com maestria por Scorsese). É sem sombra de dúvidas o melhor trabalho do ator na década. Tão bom, tão impactante, que é inimaginável não receber premiações no circuito cinematográfico.
O acerto de Scorsese é contar uma história sem preocupação com tempo. O foco é fazer com que o espectador entenda e sinta como se formou esse elo de confiança entre os dois personagens com Frank Sheeran. Óbvio, isso leva tempo de projeção, mas é feito magnificamente. Temos duas pessoas completamente diferentes e que passam desejos e vontades específicas a Sheeran. Este administra tudo muito bem com sua personalidade solícita. Mas quando o trabalho interfere na amizade, ou o contrário, isso tende a ter um efeito como uma avalanche, um terremoto. E quando ocorre, o espectador vai ao chão, tamanho é o impacto na história. Reflexo do poder de construção da narrativa e montagem da obra.
Al Pacino faz aqui o contraponto ao personagem de De Niro
O Irlandês foge do estereótipo glamouroso dos mafiosos visto em outros filmes de Scorsese. Da mesma forma, não utiliza trilha e nem cortes para acelerar o ritmo. É um filme sóbrio, seco. Ver alguém morrendo é escutar em cheio o estampido da arma. A morte é um elemento, não um momento performático. Por isso, a obra é centrada nos diálogos constantes e no relacionamento humano. O pão e o vinho são os símbolos de uma era. O começo, o meio e o fim. E no fim, todo homem carrega nas costas sua história e seus dilemas. E o Diretor, corajoso, retrata tal momento sem ser piegas e cair em chavões. Um homem que vive errante não buscará uma redenção. Ele conviverá e sofrerá com ela e da forma que a idade avançada permite.
A polêmica tecnologia de rejuvenescimento utilizada pelo Diretor pode gerar algum debate relacionado à qualidade e perda de expressão facial. Mas ela é funcional, assim como, a caracterização dos personagens em idade avançada. Logo, é uma ferramenta que mais acrescenta à trama do que prejudica. Lembrando, não é um elemento chave, apenas uma causa de estranhamento. Há um fato histórico adicionado surpreendente à trama, relevante ao personagem de Jimmy Hoffa, e que adentra à podridão política da família Kennedy assim como as motivações obscuras de invadir Cuba e tirar o “tal de Castro de lá”.
O Irlandês foi pensado e montado visando seu final. É denso e humano. Enseja um misto de sentimentos conflitantes no espectador. Abala certezas e crenças, questiona o homem e suas escolhas e espanta pela cruel realidade da solidão e do esquecimento. O simbolismo de um anel ou de uma porta entreaberta são meras interpretações frente à certeza de Scorsese. Esse não precisa provar mais nada, está na galeria dos maiores.