Miguel de Cervantes Saavedra, que passou à história com o nome de Miguel de Cervantes (1547-1616), é considerado o maior escritor de língua espanhola de sempre. Suas principais obras são Novelas Exemplares (publicado em 1613) e, a sua obra prima, O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha (publicado em duas partes: a primeira em 1605 e a segunda em 1615).
Dom Quixote narra, em modo de paródia, a história desse fidalgo que perdeu a razão de tanto ler romances de cavalaria e pretendia imitar os feitos de seus heróis literários. Armado de lança e vestindo uma velha armadura, cavalgava um cavalo magro chamado Rocinante. Acompanhava-o em suas aventuras o fiel escudeiro Sancho Pança, sempre viajando em seu burrico.
A dupla viveu várias aventuras - e muito mais desventuras. Enquanto Dom Quixote tinha uma visão idealista e sonhadora de tudo - como, por exemplo, na famosa cena a qual confunde moinhos de vento com gigantes -, Sancho Pança tinha a visão realista, representando o bom senso. Através do humor e da ironia, Cervantes criticava o mundo de então.
O livro foi, e ainda é, um grande sucesso, ultrapassando as fronteiras da Espanha, transformou-se em um clássico universal e as figuras do Cavaleiro da Triste Figura (alcunha de Dom Quixote) e de seu escudeiro tornaram-se extremamente populares. O termo "quixotesco" tornou-se sinônimo de alguém com intenções boas e ideais nobres, mas sonhador e afastado da realidade.
Toby Grisone (Adam Driver de Star Wars: Os Últimos Jedis) é um cineasta talentoso, mas arrogante e mulherengo, que está na Espanha fazendo um filme para uma campanha comercial inspirado no livro Dom Quixote de La Mancha e envolve-se com Jacqui, a esposa (Olga Kurylenko, de 007 - Quantum of Solace) de seu chefe (Stellan Skarsgård, da franquia Thor). Um cigano (Óscar Jaenada, de Águas Rasas) vende a Toby um DVD de um filme chamado O Homem Que Matou Don Quixote que, por coincidência, foi o filme que fez também na Espanha quando ainda era estudante para a formatura de seu curso de cinema.
Depois de quase ser pego em flagrante junto com Jacqui pelo chefe, Toby decide ir para o pequeno povoado onde realizou O Homem Que Matou Don Quixote para encontrar inspiração e também algumas das pessoas que atuaram no filme. Descobre que a bonita Angélica (a portuguesa Joana Ribeiro, de O Caderno Negro), que interpretou Dulcinéia, foi embora do povoado. Também descobre que o intérprete de Dom Quixote, o sapateiro Javier (Jonathan Pryce, de A Esposa), enlouqueceu e acredita ser o próprio personagem.
Ao ver na estrada um letreiro escrito "Quixote vive", Toby segue a trilha e vê que Javier, vestido com a armadura de Dom Quixote, é explorado por uma velha em um cinema-poeira. Ao ver Toby, Javier o confunde com o escudeiro Sancho Pança, escapa do lugar, mas, durante a fuga, provoca um incêndio. Ao retornar ao local das filmagens, Toby é preso pela polícia acusado de ter provocado o incêndio no cinema-poeira. A partir daí, começa a sua bizarra aventura.
O livro de Miguel de Cervantes teve várias adaptações para o teatro, balé, ópera e, claro, cinema, sendo que uma das versões mais conhecidas é a do cineasta e ator Orson Welles (Cidadão Kane), que trabalhou no filme durante anos, teve várias interrupções devido à falta de verba para a produção e ficou inacabado. No papel de dom Quixote estava o ator espanhol Francisco Reiguera (Simão do Deserto) e no de Sancho Pança estava o russo Akim Tamiroff (Por Quem os Sinos Dobram). Embora estivessem incompletas, as fitas foram posteriormente reunidas, montadas e exibidas no Festival de Cannes, em 1992, com o nome de Dom Quixote, de Orson Welles.
O Homem Que Matou Don Quixote é um filme que entrou para a história por razões semelhantes às do filme de Welles: foram várias tentativas frustradas de realização e produção, além de vários nomes envolvidos - além do próprio diretor Terry Gilliam (Os 12 Macacos) - como os intérpretes Jean Rochefort (Asterix e Obelix: Ao Serviço de Sua Majestade), Johnny Depp (franquia Piratas do Caribe), Vanessa Paradis (Rio, Eu Te amo), Robert Duvall (saga O Poderoso Chefão), Michael Palin (Um Peixe Chamado Wanda), John Hurt (V de Vingança) e Ewan McGregor (Moulin Rouge).
O Homem Que Matou Don Quixote inicia com uma auto-ironia "Após 25 anos de espera...". Mas, a espera valeu a pena? A resposta é: Depende do seu ponto vista.
Se você é daqueles que espera uma superprodução digna dos maiores estúdios de Hollywood ou um filme revolucionário, prepare-se para ficar decepcionado. O Homem Que Matou Don Quixote teve um custo de "apenas" U$ 16 milhões, baixo para padrões hollywoodianos. Não chega a ser revolucionário, mas é daqueles filmes que, com o passar do tempo e as posteriores revisões, tem tudo para tornar-se um Cult Movie.
O Homem Que Matou Don Quixote segue a linha de trabalhos anteriores de Gilliam, uma fantasia imaginativa na qual seus personagens andam por uma linha muito estreita que separa a sanidade da loucura. As críticas à sociedade materialista e seus interesses mesquinhos por dinheiro, fama, poder e sexo também são mantidas.
O Homem Que Matou Don Quixote por vezes lembra as produções do próprio Gilliam da década de 1980 tais como Bandidos do Tempo (1981) e As Aventuras do Barão de Munchausen (1988), daí a impressão de parecer "datado", mas trata-se do estilo do diretor. O ritmo é um pouco arrastado, o que pode cansar a platéia.
Filmado na Espanha e em Portugal, O Homem Que Matou Don Quixote mostra fartamente as belas e variáveis paisagens da Península Ibérica que vão desde regiões semidesérticas a outras exuberantemente verdes, em um belo trabalho de fotografia do velho colaborador de Terry Gilliam, Nicola Pecorini (Ra.One).
Desde que iniciou o seu trabalho na saga Star Wars, Adam Driver vem sendo cada vez mais requisitado para novos filmes que mostram o seu grande talento de interpretação que, inclusive, lhe valeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante deste ano por Infiltrado na Klan (2018).
Porém, em O Homem Que Matou Don Quixote, ele parece um pouco deslocado. Sua atuação continua competente (embora em algumas cenas esteja exagerado), mas a impressão que deixa é que comédia não é a praia dele. Mas, ainda assim, a balança pende a favor.
Joana Ribeiro é ainda muito pouco conhecida fora de Portugal, mas mostra que é tão bonita quanto competente e, se conseguir mais trabalhos de destaque, pode muito bem ter uma boa carreira internacional tal como sua predecessora, Maria de Medeiros (Pulp Fiction).
Quem dá um verdadeiro show e rouba todas as cenas em que aparece é, sem dúvida, Jonathan Pryce. Vencedor do prêmio de Melhor Ator em Cannes por Carrington (1995) e também um costumeiro colaborador de Gilliam, esse veterano e sempre ótimo ator do País de Gales está tão bem no papel-título que é difícil acreditar que ele não seja o próprio Dom Quixote!
Olga Kurylenko faz um papel um tanto ingrato como a mulher bonita e infiel do chefe que quer, a todo custo transar com o empregado de seu marido. Ingrato por não ser a primeira vez que interpreta esse tipo de personagem, mas não compromete, assim como o restante do elenco.
O Homem Que Matou Don Quixote teve sua première mundial no Festival de Cannes deste ano e teve críticas mornas da imprensa internacional. Pode ser considerado um trabalho menor de Gilliam, mas, para mim, sem ser uma obra-prima, é um bom filme que vai melhorar com o tempo.
Seu maior mérito é mostrar, através do Cavaleiro da Triste Figura, que, se sonhar demais pode alienar-nos da realidade que nos cerca, inclusive a servir como uma espécie de fuga, viver sem um sonho é simplesmente horrível e triste, pois são os sonhos que nos tornam humanos e faz com que vida ainda valha a pena ser vivida.
Por tudo isso é que o engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha vive. E viverá para sempre!