Nem tão fundo na terra,
nem tão fundo nas águas
‘Ondine’, de Neil Jordan, encontra sua grandeza na estratégia de lançar permanentemente o espectador no “limbo” existente entre o real e o imaginário
Tem tudo para ser conto de fadas, tem tudo para ser vida real. Lançar o espectador no espaço entre esses dois universos é a principal diversão de ‘Ondine’, escrito e dirigido por Neil Jordan. A história começa mostrando o pescador Syracuse (Colin Farrell) em mais um dia de trabalho qualquer. Ou quase. Na rede, ao invés de peixes, ele encontra uma mulher linda e misteriosa (Alicja Bachleda). A filha de Syracuse, Annie (Alison Barry), não demora a descobrir quem de fato é a mulher misteriosa: uma selkie, criatura mágica meio mulher, meio foca, segundo o folclore de países como Escócia e Irlanda.
Tudo indica que o filme é um relato calcado no mitológico, intensificado pelo olhar infantil de Annie, que busca na imaginação um refúgio para seu cotidiano sofrido. A menina tem insuficiência renal e aguarda um transplante. Mas afirmar que é apenas “o olhar infantil de Annie” que lança o espectador para o fantástico é um equívoco. O próprio roteiro, como um todo, conduz para o terreno da ambiguidade: a moça seria mesmo uma criatura mágica ou os detalhes aparentemente “mágicos” não passam de uma coincidência com uma história lógica, real, oculta? E se tudo não passar de coincidência, qual seria, afinal, a história lógica, real, oculta envolvendo a moça oriunda das águas?
Mesmo em meio a essa atmosfera de “fantástico”, de conto de fadas, a obra de Neil Jordan expõe uma galeria de personagens marcados pelo sofrimento, cada qual com suas feridas para cicatrizar. Portanto, há beleza, poesia, inocência e ambiguidade, mas, também, a certeza de que, na vida, nem tudo são flores. E que o recomendável, em algumas ocasiões, é mesmo encontrar um espaço de aconchego, uma fuga, em um universo imaginário. Já em outras, o mais certo a fazer é saltar do “universo imaginário” e cravar os pés na realidade. O resultado de todo esse passeio ao qual o diretor convida? Belo, melancólico e atraente.