A selvagem natureza humana
por Bruno CarmeloUm dos principais contos de Machado de Assis, Pai contra mãe, girava em torno de uma fatalidade. Estas duas figuras familiares de igual importância entravam em conflito, e por questões de ideal, de classe social e mesmo de sexo, a sobrevivência de uma delas implicava a morte da outra. De certo modo, este é o mesmo conflito que se encontra em Valente.
A jovem princesa Merida sempre se identificou mais com o espírito selvagem do pai, com quem tem maior afinidade e de quem herdou os cabelos ruivos e selvagens. Já a mãe tem os cabelos presos, escuros, impecavelmente arrumados, e acredita na etiqueta como obrigação social, além do casamento como finalidade para uma mulher. Logo após brigar com sua mãe e chamá-la de monstro, Merida encontra uma bruxa que acaba por transformar sua mãe justamente nisso: em um monstro ou, no caso, em um urso selvagem.
Este conflito, o principal de Valente, é um potente motor para o roteiro, riquíssimo em significados. Não só a mãe tenta civilizar sua nova natureza animal – a maioria do humor nasce deste urso comendo com talheres, limpando a boca com guardanapos -, mas também a filha precisa esconder a nova transformação materna do próprio pai, que detesta ursos. Merida deve impedir que seus pais matem um ao outro, mas acima de tudo ela deve impedir que o confronto entre a liberdade (pai) e a tradição (mãe) destrua a noção de família.
Esta é provavelmente a primeira vez em que a Pixar escolhe um mediador como protagonista. Merida é a coadjuvante de sua própria história, ela é a prova de que a diplomacia como forma de valor moral também pode chegar aos contos infantis. A garota tem grande talento no arco e flecha, mas não mata mais que alguns peixes (e por questão de sobrevivência). Ela não tem conflito nenhum para si, algo realmente novo e quase revolucionário em um filme infantil, que sempre força na transformação do protagonista pelos valores da amizade (Toy Story, Up - Altas Aventuras, Monstros S.A.) ou do amor romântico (Wall-E). A família neste caso não aparece mais como uma instituição essencialmente boa, como em Procurando Nemo e Os Incríveis, e sim como uma forma heterogênea e conflituosa a ser moldada.
Mesmo assim, alguns críticos afirmaram, de maneira depreciativa, que esta obra se parecia mais com os antigos filmes da Disney, pela presença gritante da família como tema central. De fato, há pouco em jogo além das relações de filiação e casamento, mas este é um dos raros roteiros que não se limita a ensinar as crianças a amarem os pais, apostando em uma adaptação mútua entre ambas as partes. Esta é uma primeira surpresa: não é sempre que os pais também são vistos como seres tão perfectíveis quanto seus filhos. Contra o argumento do "filme à moda antiga", as escolhas da direção mostram uma técnica moderníssima, enquanto alguns toques do roteiro revelam a preocupação da Pixar em ser competitiva no mercado – como a inclusão dos trigêmeos, por exemplo, uma provável resposta da empresa aos populares pinguins de Madagascar.
Além disso, ao invés da mensagem católica dos filmes tradicionais da Disney, Valente adota um lema mais contemporâneo, mais protestante. Nada de um destino pré-determinado por forças divinas, e sim a moral muito americana do "faça você mesmo", "você pode ser o que quiser, contanto que se esforce". Talvez por isso o filme tenha sido chamado de pró-feminista, apoiando a independência da mulher - vide a bela cena em que Merida disputa a sua própria mão em casamento. A narrativa, inclusive, estabelece uma "passação de poder" dos homens às mulheres, iniciando-se com o título inscrito na tela após um ato de bravura do pai, e terminando com um ato de bravura das duas mulheres da família. Destaque, aliás, para esta cena bem erótica da mãe-selvagem, com os cabelos finalmente soltos, despenteados, nua e cercada por diversos homens brutos. Quando seu próprio marido a vê, ele manifesta primeiro o desejo sexual, antes do desejo de protegê-la. Poucas cenas da Pixar foram tão sensuais quanto esta.
Por fim, Valente surpreende não apenas por escolher uma mulher como protagonista, muito menos por se passar na Escócia medieval. Este filme ousa abordar a família sem glorificá-la, sem maniqueísmos, sem ceder à obrigação moral e mercadológica de atribuir um amor romântico à protagonista. Esta garotinha de cabelos despenteados, que rasga as roupas justas para revelar suas formas e melhor praticar o arco e flecha (outro momento erótico), consegue associar a ideia de liberdade não mais à conquista do território e do poder, mas à conquista social e individual. Isto sim, é um avanço considerável nos roteiros infantis, e uma forma de modernidade mais que bem-vinda ao cinema de animação.