"Com responsabilidade, graças a Deus"
por Rodrigo TorresO mundo mudou muito nos últimos anos. Esse novo levante dos movimentos sociais no Ocidente torna cada vez mais comum assistir a filmes antigos e pensar que eles jamais seriam feitos atualmente. O roteirista Joe Robert Cole, de Pantera Negra, observou que o pontapé inicial da Marvel no cinema seria diferente em 2018, com um Tony Stark (Robert Downey Jr.) diferente do homem cafajeste que vimos em Homem de Ferro, há apenas 10 anos. Certos comportamentos já não passam despercebida e impunemente, como misoginia, racismo, homofobia e outros abusos dos direitos humanos. O mesmo vale para personagens clássicos de John Wayne (Rastros de Ódio), Clint Eastwood (Dirty Harry) e outros justiceiros implacáveis, que jamais teriam a visão romantizada de outrora nos dias de hoje.
Curiosamente, porém, dois artistas com apreço pela violência decidiram trazer de volta um personagem politicamente bastante incorreto. Eles são Eli Roth, diretor de olhar mórbido que realizou os doentios O Albergue e Bata Antes de Entrar, e o roteirista Joe Carnahan (A Perseguição). O homem com sede de vingança é o viúvo Paul Keiser, eternizado por Charles Bronson na maior lenda do Domingo Maior da Rede Globo, Desejo de Matar. Sua releitura com Bruce Willis não poderia ser mais acertada, dado o retrospecto do ator de Duro de Matar. Mas eis que, apesar desse trio parada dura no comando da adaptação, o novo Death Wish (no original) se mostra um filme incrivelmente consciente sobre o momento da sociedade, e até mesmo reflexivo sobre a prática do justiçamento.
Não que Desejo de Matar seja um filme de esquerda, longe disso. Mas o roteiro de Joe Carnahan é totalmente condizente com o modo com que um "Anjo da Morte" seria encarado na sociedade atual, sendo flagrado por smartphones e transformado em objeto de longas e polarizadas discussões em jornais, rádios, podcasts e redes sociais. Em sendo coerente, o texto se torna mais palatável para o que a obra é em essência: um filme de vingança. Capaz de colocar o espectador mais empático a causas sociais — ou quase — ao lado do pai de família e médico (!) exemplar que se transforma em um assassino cruel. O trabalho de Joe Carnahan é malicioso e muito inteligente.
Temos, portanto, dois Bruce Willis em tela. E nenhum exatamente como o tira John McClane. O primeiro revela uma certa incapacidade do ator em viver um homem amoroso, dedicado à mulher e à filha, cirurgião prestigiado e trajado como um almofadinha. Se Liam Neeson se encaixa perfeitamente nesse tipo, Bruce Willis é canastrão toda vida. Em algumas cenas, quase se pode ver o ator à beira do riso, como se não acreditasse no que está dizendo, no que está vestindo, em como está se portando. Mas ele é experiente: com a boa presença física frente à câmera, se impõe; a expressão contida é sua muleta para conferir a verossimilhança suficiente e exercer seu papel. Até bem.
A transformação gradual de Paul Kersey é mais eficiente nesse sentido. A habilidade de Bruce Willis como ator de ação se alia à sagacidade de Joe Carnahan — que leva o protagonista para uma loja de armas, o coloca diante de vídeos no YouTube que ensinam a manusear armas de fogo, mostra como o ferrolho da pistola pode machucar a mão de um atirador inexperiente na hora do tranco... Tudo para retratar Paul Kersey como um homem comum, vulnerável, que sangra e "só mata quem merece" — cidadão de bem com selo Dexter. Um protagonista que conquista a afinidade do espectador, especialmente seu alvo, o médio. O resto é moleza para o diretor.
Eli Roth cumpre bem o seu trabalho. As sequências de ação possuem grandes lampejos nas duas primeiras investidas de Paul Kersey (especialmente a segunda, pela agilidade), o split-screen que compara o velho e o novo ofício do protagonista é particularmente inspirado, o ritmo do filme é dinâmico, ainda que a direção seja, no geral, apenas correta na execução do roteiro. O cineasta só demonstra entusiasmo quando dá vazão ao seu amor pelo gore, o que é particularmente bom em um tempo em que o cinema mais se preocupa com a classificação indicativa do que com a lógica narrativa. Desejo de Matar sem sangue não é Desejo de Matar. E o novo Desejo de Matar é muito Desejo de Matar. Pois, ainda que reconheça que a reação do protagonista é errada, tudo que o filme faz é dedicar ao seu público tudo que ele deseja: tiro, tortura, morte, catarse. Com a esperteza de violar a ética vigente, como diria o jogador de futebol Felipe Melo, "com responsabilidade, graças a Deus".