Uma realidade 'preciosa'
Às vezes, você precisa do cinema para te dar um choque de realidade. Por mais que a gente sabe que existe muita maldade e coisa errada por aí, quando é colocado de modo explícito na sua frente é bem diferente. Trabalho num jornal popular, dou de cara diariamente com notícias de tragédias, assassinatos, crimes hediondos, abusos sexuais, maus tratos contra crianças, idosos e animais, mas quando vi as cenas de "Preciosa - Uma História de Esperança" fiquei tão chocado que parecia que a realidade que vejo todos os dias é menos absurda. É o poder da imagem, do som, do enquadramento bem feito, da ambientação e da exímia direção de Lee Daniels, de um roteiro adaptado digno de um Oscar em 2010 para Geoffrey S. Fletcher.
Claireece "Preciosa" Jones (Gabourey Sidibe) tem uma vida difícil, muito difícil. Acomodada e triste aos 16 anos, ela não tem esperança de que sua vida possa ser um dia feliz ou até mesmo um pouco melhor. Ela até sonha em sair da sarjeta, ser famosa, namorar um jovem branco e de cabelo liso (palavras dela), mas não faz absolutamente nada para mudar esse cenário. Mas também é quase que impossível mudar e sair do inferno que se transformou sua vida. A começar pela mãe dela, vivida por Mo'Nique, que levou a estatueta de Melhor Atriz Coadjuvante e deu um show de interpretação dramática e impactante no filme. As agressões e os maus tratos maternos são constantes, tudo porque ela acredita que a filha "roubou" dela o marido. O pai de Preciosa a estuprava desde pequena, sob o consentimento da mãe, o que a revoltava ainda mais. Isso resultou na protagonista tendo uma filha com síndrome de Down e mais outra gravidez precoce. Por conta disso, Preciosa ainda foi expulsa da escola e passou a estudar em um colégio especial, onde começa a ter acesso a uma outra realidade, mais compreensível.
É nesse ponto do filme, que ainda conta com Mariah Carey e Lenny Kravitz no elenco, que a "história de esperança" começa a ser desenhada. Na sala de aula, a atenciosa professora pergunta para as rebeldes alunas "o que elas sabem fazer de melhor". Uma responde que é cozinhar, a outra que é ser mãe... Quando chega a vez de Preciosa, ela chora e diz que não sabe fazer nada bem. Que tudo na sua vida era negativo e que não tinha aprendido nada de bom para compartilhar. A professora insiste e tenta tirar dela o mais profundo dos sentimentos bons e atitudes produtivas. A moral da história ali é que todo mundo tem esse lado bom. Todo mundo sabe fazer muito bem alguma coisa e se orgulha daquilo. Uns têm o dom da escrita, outros da fala. Uns vendem muito bem, cantam ou atuam muito bem, debatem muito bem. Outros gostam de lecionar, de cozinhar, de manusear, de se explorar... E é por meio desses dons, hereditários ou aperfeiçoados pela vida, que conseguimos mostrar realmente quem somos e, assim, guiar a nossa vida para um caminho de sucesso. Eu imagino (não, eu não consigo nem imaginar) como deve ser a dor da violência doméstica, do estupro, da falta de respeito e de pudor, tão necessários para uma vida em paz. E nem falo da dor física. O emocional aqui é que está em jogo, pois, uma vez atingido, é muito traumático mudar esse cenário até tudo ser dissolvido.
A nossa realidade diária é muito dura. Talvez precisamos sempre é de um filme assim, mais duro ainda, pra nos sacudir e mostrar que cada um tem o fardo que pode carregar. O meu pode ser até mais leve (ou pesado) que o seu. Mas, como diria Caetano, cada um sabe a dor e a delícia "preciosa" de ser o que é.