Não é de hoje que o cinema mainstream enfrenta uma crise de criatividade – o excesso de refilmagens, reboots e adaptações repetidas, sem dúvidas, desestimulam boa parte do público a comprar seus ingressos – mas, é claro, que existem exceções – e fiquei bastante satisfeito em notar que o diretor (e também roteirista aqui) Leigh Whannell conseguiu atualizar de uma maneira bastante séria e tensa está história clássica do lendário escritor H.G. Wells – suas decisões de protagonismo, temas de fundo e algumas metáforas e criticas sociais fazem toda a diferença – tornando O Homem Invisível em um assustador estudo da realidade que muitas mulheres passam sob a pressão de figuras masculinas opressoras e manipuladoras.
Embora seja uma adaptação do livro de 1897 – que tinha uma versão clássica estrelada por Claude Rains em 1933, um marco na história dos efeitos especiais – a trama agora tem quase nada em relação à história original – tirando o sobrenome do cientista e uma breve vista de um homem enfaixado (marca registrada do filme dos anos trinta) em um hospital, a história parte de uma atualização dos conceitos originais – se o homem invisível de Rains tinha aspectos da filosofia de Nietzsche, especificamente da obra “O Super-Homem”, onde é imaginado um cidadão que, com um poder grande adquirido, o usaria apenas para seu beneficio, subjugando os demais – e fazendo alusões até mesmo a “dominar o mundo” – está nova versão viaja por um caminho mais intimo, mas nem por isso menos perigoso – para isso, se o protagonismo antes era do personagem-título, agora é sob o ponto de vista da vitima.
Partindo de uma metáfora bastante simples – obviamente, o homem invisível representa a figura de homens que não são vistos (ou notados) pelo resto da sociedade – mas se tornam extremamente perigosos e torturadores (e bem visíveis) para as mulheres, as quais eles abusam – quem passa por essa traumática situação é a arquiteta Cecilia Kass (Moss), vivendo em um relacionamento perigoso, praticamente presa na luxuosa casa do cientista Adrian Griffin (Cohen) – ela acaba por fugir do local, recebendo, dias depois, a noticia de que seu ex-namorado cometeu suicídio – deixando uma herança para ela, que somente será recebida caso ela não cometa nenhum crime ou não seja considerada mentalmente incapaz – a partir daí, o inferno que vivia com o ex-companheiro acaba por aumentar – com diversos incidentes atrapalhando sua relação com a família que está lhe dando abrigo agora – o policial James (Hodge) e sua filha Sydney (Reid) – além de com sua irmã (Dyer) – Cecilia suspeita que Adrian forjou seu suicídio e encontrou uma forma de ficar invisível, para prejudica-la e enlouquece-la – fazendo todos a sua volta suspeitarem que ela está realmente perdendo sua sanidade.
Nesse clima sufocante de tensão psicológica, Whannell acerta a mão por conduzir a trama sem pressa – ele desenvolve o drama, a pressão e o medo que Cecilia tem, não só pela ameaça invisível, mas pelo mundo todo – pois veja a sugestão das situações: a personagem de Elisabeth Moss passa exatamente pelo drama que diversas mulheres sofrem, ao tentarem pedir ajuda contra uma ameaça que ninguém quer saber ou ver – sendo taxada de louca, apenas pelo fato do criminoso se esconder do resto da sociedade – as tristes estatísticas aqui no Brasil, por exemplo, mostram como muitas perdem a vida devido a isto – por mais que ela tente explicar o que acontece, acaba sendo sempre questionada por todos – como ao tentarem justificar o comportamento do agressor pelo fato dele ser rico e que, por isso, Cecilia estava com ele só por interesse financeiro – parece absurdo, mas isso acontece com as mulheres, de fato – inclusive, outras mulheres, lamentavelmente, se esqueceram de que esta infeliz condição foi imposta pelo machismo estrutural na sociedade – o roteiro do próprio diretor é inteligente também em mostrar como Adrian tenta desestabilizar Cecilia em todas as suas camadas da vida – seja atrapalhando sua carreira, suas amizades e familiares – além de inserir uma sutil (mas verdadeira) critica ao fato de homens manipularem ou forçarem as mulheres a maternidade – numa espécie de afronta da sociedade patriarcal contra a independência feminina.
Contando com bons atores coadjuvantes, como o próprio Oliver Jackson-Cohen como Adrian, passando bem seu olhar de opressor e desprezo – além de Aldis Hodge como James e a menina Storm Reid como Sydney – o destaque maior do longa é, com certeza, na atuação excelente de Elisabeth Moss – a atriz consegue ser versátil ao ponto de exibir traços da personalidade de Cecilia que estão sendo destruídos pelo relacionamento tóxico no qual se envolveu – repare como ela consegue ainda passar um ar de tentar ser feliz em meio ao caos, quando resolve presentear os amigos que lhe ajudaram ou quando fica com pena do cachorro de seu ex – além disso, suas expressões e olhar perdido marcam perfeitamente a sensação de perseguição e fobia em sair para o mundo – mostrando como é uma grande atriz, Moss transforma um simples caminhar até a caixa de correio em um modo de visualizarmos como sua personagem se tornou frágil em encarar o mundo, devido a presença de um homem opressor em sua vida – sem falar da forma como encara, literalmente, a presença do ser invisível – pois veja o desafio da atriz aqui, ao ter que atuar para o “nada” ou, provavelmente, com alguém vestido de verde, que seria “retirado” na pós-produção – um trabalho marcante desta grande atriz.
Nesse clima de suspense crescente, o longa também acerta em suas concepções e ideias visuais – e creio que o maior acerto aqui seja a discrição – ao evitar dar explicações improváveis para um fato tão improvável como a invisibilidade, o roteiro foge de diálogos expositivos e absurdas tentativas de justificar fatos sem muita base técnica – algo que tanto O Homem Sem Sombra de Paul Verhoeven e o filme de 1933 tinham – a forma como é adquirida aqui é um tanto absurda ainda, mas achei mais plausível do que as experiências com uma planta que simplesmente tira a cor das coisas – sem falar que o modo como a direção de arte e a equipe de efeitos especiais exemplifica as lutas e “pegadas” do homem invisível são extremamente bem feitas, optando por um realismo que assusta – evitando sustos desnecessários e conseguindo realmente surpreender em certos momentos – como uma certa cena em que um objeto surge do nada durante uma conversa e causa algo terrível – como estamos diante de uma ameaça que não podemos ver, o trabalho de edição de som acaba sendo fundamental – com resultados excelentes, é recomendável assistir o longa no cinema ou em um bom sistema de som, para causar uma imersão e tensão maior – algo que também é reforçado pelo boa trilha sonora de Benjamin Wallfisch – criando toques de um contra baixo sintetizado e assustador – além de inserir violinos que dão mais peso e também um certo alivio para alguns momentos de medo, tristeza e desespero de Cecilia.
Pecando apenas por algumas soluções na trama que soam um tanto forçadas – como a ligação do irmão de Adrian, o advogado Tom (do Michael Dorman) – ou quando Cecilia precisa voltar para a casa do agressor para conseguir provas contra ele – mesmo que tenha uma função para complementar a trama mais tarde – ainda assim, o filme se sobressai por dar uma solução um tanto ambígua, mas satisfatória, para a trama – especialmente sobre tocar no assunto de como as mulheres devem se defender de homens como Adrian – e até que ponto a justiça é realmente justa para esse tipo de situação – ou o fato de que a sociedade precisa ver tudo escancaradamente para tirar suas supostas conclusões – vide a forma como o filme sempre insere imagens de câmeras de segurança, como se fosse o olhar da sociedade, digamos assim – algo que Whannell se aproveita bem para compor o último ato.
Junto da direção acertada e da magnifica atuação de Elisabeth Moss, O Homem Invisível é um suspense grandioso e capaz de fazer o espectador pensar sobre o tema que aborda – dando uma pequena noção do drama terrível de inúmeras mulheres que sofrem em relacionamentos abusivos.