O filme O leitor , do cineasta inglês Stephen Daldry , inspirado no best seller alemão homônimo , de Bernhard Schlink, é muito mais que um filme romântico. Ele é um filme verdadeiramente romântico. Diferentemente das milhares comédias açucaradas que transformam a intimidade em espetáculo , por meio de beijos aplaudidos por plateias de desconhecidos , O leitor devassa o amor através dos silêncios dos personagens. Remonta uma história entre dois amantes separados pelas circunstâncias , por meio de falas não pronunciadas , de imagens fragmentadas que exigem do espectador um olhar muito mais atencioso e sensível.
Nem tudo vem pronto e explicado neste filme que fala sobre o amor sob a perspectiva da culpa. Me parece que amor e culpa são dois temas realmente indissociáveis. Há quem pense que não existe amor sem culpa, sem ruptura , sem transgressão. O simples ato de amar pode ser considerado uma transgressão , pois nos faz rever valores , desmente nossas verdades , desorganiza as estruturas sociais. É uma bela bofetada bem no meio da cara de quem deseja ter tudo sob controle.
Como diria o cineasta espanhol Luis Buñuel , amor e revolta são as palavras mais revolucionárias que existem. Porém, O leitor não fala de uma culpa individual. Vai além dos sentimentos de Michael e Hanna e toma a dimensão da sociedade alemã , vinte anos após o término da Segunda Guerra Mundial. O amor parece algo proibido para um povo que participou de um genocídio. Tenho a impressão de que tanto o romance de Schlink como o filme de Daldry parecem redimir uma sociedade capaz de se entregar às mais ardentes paixões e aos mais profundos amores , mesmo em meio aos horrores de um período histórico tenebroso .
Depois de passar a vida assistindo a filmes sobre o holocausto, sempre me pareceu impossível um carrasco nazista ter se apaixonado ou ter sido capaz de um gesto verdadeiro de bondade e ternura. Não é apenas o amor que desmente as nossas verdades . O cinema e O leitor também desconstroem nossas crenças mais arraigadas, por meio de uma ex-carrasca nazista que se torna o grande amor da vida de um homem. Hanna , cúmplice da morte de 300 mulheres oficialmente , sem falar nas outras que conduziu para Auschwitz, é tão capaz de amar como qualquer outra mulher . Seu amor é desajeitado. Hanna é uma mulher rude , mas nem por isso desprovida de afetividade. Podemos ver a sua gentileza dura , logo em uma das primeiras cenas , quando ajuda Michael, adoecido na entrada de sua casa. O abraço que oferece ao garoto desconhecido e assustado tem a firmeza de quem é capaz de se solidarizar profundamente. Entretanto, em nome do dever e do cumprimento das regras , alguns anos antes , permitiu que 300 mulheres judias morressem queimadas. Hanna foge ao estereótipo do carrasco nazista , sádico e impiedoso. Ela participou de algo terrível que não conseguia compreender completamente, embora em um momento da trama , fique clara a ideia de seu entendimento e da inutilidade de sua culpa, por meio das frases “Não importa o que eu penso. Não importa o que eu sinto. Os mortos continuam mortos.”
A dor da perda transforma Michael , um garoto ingênuo e romântico, capaz de expressar seu amor despudoradamente , em um homem tragado pela solidão e pelo abandono . Depois de Hanna , nenhuma outra mulher foi capaz de preencher o vazio deixado em sua vida, nem mesmo a sua esposa e a sua filha, com quem ele se aproxima apenas no final da trama. Michael se distanciou de todos. Se distanciou dele mesmo.
O leitor quebra a dinâmica maniqueísta de mocinhos e vilãos. O amor da vida de Michael, um advogado culto, inteligente e bom caráter , é uma ex-carrasca nazista , 20 anos mais velha , analfabeta em uma sociedade letrada , em que não saber ler e escrever pode ser uma culpa tão grande e vergonhosa , quanto ter cometido um crime.
O leitor precisa ser entendido no contexto da Alemanha ocidental, pós-guerra. Alguns dos gestos , atitudes e não atitudes dos personagens , só tem significado para aquela sociedade , para aquela cultura que como qualquer outra sociedade e cultura tem os seus paradigmas. Podemos dizer que a grande prova de amor que Michael oferece a Hanna é uma não atitude , uma omissão. Ele não a ajuda a se livrar de uma condenação injusta , porém, preserva o seu segredo . É no silêncio mais uma vez que se refugia o amor em O leitor.
Se combater o analfabetismo é uma questão em processo em nosso país , o mesmo não acontece na Europa Central em que é inadmissível não saber ler e escrever. Para aqueles que se prenderem aos valores e verdades da nossa cultura , O leitor pode soar como inverossímil. Para quem nunca se questionou sobre os mecanismos do amor , o mesmo pode ocorrer. Será que sempre amamos o mais adequado a nós? Será que sempre amamos o mais valoroso, o mais altruísta , o mais belo, inteligente , culto e generoso? Mais que uma aula sobre um povo estigmatizado , é uma releitura sobre a dinâmica imprevisível do desejo.