Cinema é sonho; é ilusão. Porém, não me refiro às ilusões cor-de rosa e típicas de filmes que pretendem instaurar um falso otimismo no lugar de um otimismo coerente , consistente e possível. Refiro-me ao sonho como mistério; mistério da vida ; mistério da alma. Tudo ou quase tudo é bem misterioso se formos parar para pensar. "Cisne negro"mergulha fundo num mundo de possibilidades múltiplas onde podemos a qualquer momento encontrar o nosso outro eu. O coreógrafo via apenas o cisne branco na jovem e enigmática protagonista ; uma bailarina perfeccionista e aparentemente contida no quesito paixão. Merece destaque a cena em que o personagem de Vincent Cassel , Thomas, afirma para Nina que a bailarina Lilly apesar de não possuir uma técnica muito apurada , dança com liberdade ; o que falta à Nina: se soltar , fluir , descobrir sua sensualidade ; descobrir suas outras possibilidades. Porém, o mais interessante da trama seja perceber que talvez só houvesse o cisne negro em Nina e que seu aspecto de cisne branco foi apenas mais um dos efeitos alucinógenos deste filme que nos arrasta constantemente para uma aura de pesadelo. Em "Cisne negro" tudo é muito tenso: a relação de Nina com sua mãe; sua mania de se machucar; o doloroso processo criativo que vai muito além dos ensaios de dança. Quando finalmente vemos as penas pretas brotarem de seu corpo , juntamente com Nina , sentimos a dolorosa e deliciosa intensidade de atingirmos o nosso clímax; o nosso encontro brutal com nós mesmos ; com nossa genialidade e demência; lucidez e loucura. Nina se mostra o mais genial possível quando já está entregue à demência. Esta é a parte mais tenebrosa e linda do pesadelo. Visualmente é um espetáculo de encher os olhos e arrepiar o coração. Muitos filmes de terror não são capazes de apresentar uma cena tão mórbida. Merece destaque também a sequência em que Nina e Lilly saem juntas e não sabemos ao certo o que realmente aconteceu entre elas ; onde termina a realidade e onde inicia a imaginação de nosso cisne em mutação. "Cisne negro" combina magistralmente sonho e realidade , mostrando que para quem sonha , a imaginação é tão concreta quanto à mais pura realidade. O filme abusa de espelhos ; metáfora meio batida , mas que sempre funciona muito bem quando queremos falar sobre pessoas que olham para dentro de si. Porém, muitas vezes , como diria o escritor Sidney Sheldon, quem se olha no espelho , só vê a um estranho. É o caso de Nina , que é uma estranha para ela mesma. Nina nem ao menos conhece seu corpo e o agride pois é a única forma de relação que consegue estabelecer com ele. "Cisne negro" é visualmente muito instigante, pois os movimentos de câmera nos induzem à subjetividade ; a iluminação escura nos remete às sombras que temos em nós mesmos; o sonho se misturando à realidade é um convite ao desconhecido ; a interpretação dos atores nos conduz à ambiguidade do ser humano. Os personagens são muito ambíguos. A mãe de Nina é extremamente protetora , porém, existe algo de muito tenso e dominador em sua personalidade. A sensual Lilly talvez não seja tão desprendida como aparenta ; o coreógrafo Thomas tem um método de trabalho bem pouco ortodoxo e Nina é o cisne negro. Em resumo: o filme tem os elementos temáticos e de linguagem necessários para conduzir o espectador a aura onírica do cinema e de nossos próprios fantasmas. Talvez , o filme seja pessimista demais. Porém, não deixa de ter mensagens: para ser um bom artista é preciso acima de tudo, viver e sentir. Artistas não se fazem unicamente em estúdios e escolas. Os artistas se fazem também e principalmente no embate do dia a dia; na complexidade da vida. Segunda mensagem: nunca subestime o inimigo que existe dentro de nós.