Atriz Dira Paes estreia como diretora em meio à floresta em drama cercado pelo som dos pássaros.
por Aline PereiraHá sempre (ou quase) algo de interessante em acompanhar as empreitadas de atores do outro lado da câmera e entender como a visão artística da interpretação pode se transpor para a criação. Aqui, falando de Pasárgada, a palavra para essa passagem seria “encanto”. Pouco antes de completar 40 anos desde sua primeira aparição no cinema, em A Floresta das Esmeraldas, Dira Paes assinou seu primeiro filme como diretora e roteirista em uma história que é de ar fresco, mas também de enclausuramento.
A protagonista de Pasárgada é a ornitóloga Irene (Dira Paes), uma especialista em estudo das aves que está mergulhada em uma pesquisa em meio à floresta da Mata Atlântica. Isolada e solitária, a mulher tem a companhia de duas figuras locais, Ciça (Ilson Gonçalves) e Manuel (Humberto Carrão), guia da região que auxilia Irene em sua exploração. O processo da pesquisa, é claro, vai muito além da observação do comportamento animal e a própria Irene se torna um objeto de estudo para o público.
Embora silenciosa e sorrateira, a presença da protagonista naquele ambiente tem consequências práticas – que prefiro não detalhar para evitar spoilers de uma experiência que é satisfatória a quem assiste – e a mistura de seu papel de observadora, predadora, entre diversas outras relações animais e humanas, é o grande motor para a atmosfera de Pasárgada. A floresta pode até dar uma sensação de infinitude aos olhos, mas há também uma sensação de prisão sem fim que envolve nossa personagem principal.
O pouco contato que Irene tem com pessoas que não estão fisicamente presentes deixam claro o sentimento de isolamento que ela vive, assim como a proximidade e conforto que faltam nos diálogos dão a deixa de que Irene está fugindo e se escondendo – de que? de quem? Dos outros e de si em alguma medida. Nesse sentido, a atuação contida de Dira Paes forma um contraste de impacto com a escala das imagens que ela decide registrar como diretora: tudo ao redor de Irene é gigante, mas ainda assim temos uma personagem “enjaulada”, refém.
À medida em que vamos conhecendo Irene, quem ela é, como lida com o trabalho e com seus coadjuvantes em cena, vem também uma transformação em nossa percepção sobre ela. Longe de ser um “preto no branco”, o longa nos desafia a exercitar um tipo de compreensão que é incômoda. Ganância, instinto, racionalidade e proteção são algumas das questões que surgem no desenrolar do drama.
Apesar de, no fim das contas, ter embarcado no papel da personagem nessa trama, senti falta de alguma firmeza. Leva muito, muito tempo até que, de fato, a história encontre seu rumo, o que dificulta uma conexão que penso que seria importante para a “gravidade” que está no coração da trama. Há temas latentes, relevantes e urgentes em discussão, mas tudo é proposto uma forma etérea e distante.
Irene está longe de ser uma super-heroína em Pasárgada e quanto mais suas contradições vão aparecendo, mais intensa foi a minha curiosidade em observá-la. Peço desculpas pelo paralelo óbvio, mas é como se nesse caminho, o público é quem precisasse tomar nota e estudar aquela figura. Uma boa aposta para trazer o fator engajamento a uma trama que é, sobretudo, de contemplação – nem sempre o ritmo flui tão bem, mas passa longe da monotonia.
Não à toa, Pasárgada levou o troféu de Melhor Design de Som em sua estreia no Festival de Gramado 2024. Toda a parte auditiva do longa é mesmo impressionante e a experiência sonora que chega a quem está assistindo é vívida e intensa – características que fariam muita falta caso não aparecessem na história. O trabalho de Irene como ornitóloga, claro, tem o som dos pássaros como fator imprescindível e no ambiente da sala de cinema em que assisti ao filme, não só o canto das aves preencheu o lugar, mas também os sons da água, das árvores, das vozes dos personagens em meio ao silêncio.
O mesmo vale para o quesito visual: não é que Pasárgada tenha encontrado uma forma muito diferente do habitual para retratar a natureza e a beleza do cenário, sem dúvidas, ajuda e fala por si só. O contraste que mencionei antes, entre a dimensão do ambiente e da protagonista, é que dão a pitada mais particular e, no fim, cumpre o objetivo de envolver o espectador na narrativa.
No poema de Manuel Bandeira que divide o título com a obra de Dira Paes, Pasárgada é o éden onde está a felicidade, a beleza e a paz. A salvação do poeta de seu próprio sofrimento. Na história de Irene, este paraíso também nos é mostrado em tela, mas a calmaria está sempre em ameaça.