Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Aconteceu Perto da Sua Casa

Serial killer, manual de instruções

por Bruno Carmelo

Talvez o cinema nunca tenha a oportunidade de acompanhar a rotina de um assassino real, matando as suas vítimas diante das câmeras – algo que geraria óbvias implicações legais e impedimentos morais. O mais perto que chegamos desse experimento se encontra em Aconteceu Perto da Sua Casa, falso documentário sobre um assassino em série. Desde a primeira cena, Ben (Benoît Poelvoorde) ataca uma mulher em um trem, estrangulando-a com uma corda. A câmera segue atentivamente os gestos. Depois, ele revela os segredos de sua profissão, explicando a melhor maneira de desovar um corpo ou deixar o mínimo de traços no ambiente.

O universo desta comédia belga é tão simples quanto delirante. Ben ataca dezenas de pessoas sem ser perseguido pela polícia, sem empecilhos, sem testemunhas. O tom de suspense normalmente associado às matanças é eliminado. Resta um prazer equivalente ao dos jogos eletrônicos de tiros, no qual os ataques são simulados, livres de amarras sociais. Para Ben, a atividade é uma arte com regras próprias – nada de atacar jovens, por exemplo. O elemento mais surpreendente é a fusão da ficção com a estética realista obtida através da câmera na mão, tremendo como numa captação urgente. O prazer que o público supostamente teria ao assistir mortes fictícias se torna controverso pela proximidade com um mundo existente.

Embora o assassino seja o protagonista, a equipe de vídeo que o acompanha adquire um papel cada vez maior na história. Inicialmente meros cúmplices, eles passam a ajudar no carregamento dos corpos ou na finalização de alguma vítima agonizante. O olhar do público acompanha o voyeurismo questionável daquela equipe: se a passividade diante dos atos pode ser desculpada, a participação ativa se torna muito mais questionável. De repente, o espectador é jogado para dentro dos crimes, como parte ativa de cada novo ataque. Raras comédias questionam de maneira tão feroz a condescendência e a passividade do espectador diante de uma obra de arte.

Além do fértil questionamento moral, Aconteceu Perto da Sua Casa é marcado por inúmeras qualidades estéticas e de atuação. A montagem possui ritmo excelente, a fotografia em preto e branco cria contrastes eficientes e os enquadramentos atingem resultados belíssimos – vide o tiroteio dentro do galpão. Qualquer aparência de amadorismo se dissolve diante da competência da execução. Para ajudar, o brilhante Benoît Poelvoorde revela seu arsenal cômico com uma desenvoltura ímpar, tanto nos movimentos quanto nas falas, muitas de aparência improvisada. O serial killer adquire boa profundidade psicológica quando percebemos sua solidão, sua insegurança e seu discurso reacionário, típico da extrema-direita.

Infelizmente, no terço final da história, a fábula do matador carismático estabelece pontos de contato próximos demais da realidade. O caso do pequeno Grégory, garotinho assassinado que despertou grande comoção na Europa, é parodiado numa longa cena de moral duvidosa. Em outro momento, Ben e a equipe de filmagem estupram uma mulher dentro da casa dela, rindo para a câmera. Embora a cena seja obviamente uma encenação, o escárnio diante do estupro e a verossimilhança do ato – existia de fato uma atriz naquele local, nua e simulando a agressão sofrida por vários homens – deixam um gosto amargo. De repente, o universo inconsequente das matanças em série é contaminado pelo descaso com algumas feridas abertas do funcionamento social.

Seria essa conclusão uma nova crítica à passividade diante da violência? Um teste sobre o nível de agressão tolerado pelo espectador até a produção do incômodo e o questionamento de seu próprio prazer? Esta seria uma possibilidade. A outra é de que os diretores Rémy BelvauxAndré Bonzel e Benoît Poelvoorde se permitiram rir de tudo e todos, sem freios, e também sem se responsabilizar pelo discurso. A ideia da liberdade de expressão se interrompe diante do discurso de ódio e da sugestão de que os crimes reais são tão risíveis quanto aqueles da ficção. É uma pena que a inconsequência de Ben se transforme na inconsequência do próprio filme rumo ao final.

Filme visto online no My French Film Festival, em fevereiro de 2018.