Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Organismo

Mente sã, corpo frágil

por Bruno Carmelo

Este drama nacional desperta atenção desde a premissa: quantos filmes sobre deficientes você já viu, feitos por deficientes? Quantos dramas sobre cadeirantes tiveram o olhar de um cineasta cadeirante? Em OrganismoJeorge Pereira traz parte de sua experiência pessoal aos cinemas, algo que impressiona tanto pela representatividade quanto pela naturalidade da abordagem. No papel do tetraplégico Diego, Rômulo Braga é visto desde o princípio como um corpo vivo, pulsando de desejos e emoções, ainda que inerte numa cama, e dependente dos cuidados alheios para sobreviver.

O roteiro efetua um bom trabalho ao contrapor a atividade e a passividade: por um lado, o jovem personagem possui um afiado senso crítico sobre a sua condição e sua inserção na sociedade. Ele discute, através de uma narração em off, a sexualidade, o amor, a noção de futuro e os laços criados com as pessoas ao redor. Diego possui todos os sentimentos de qualquer outra pessoa sem deficiência, algo que poderia parecer óbvio, mas que merece ser reforçado pela dificuldade do público médio em compreender a alteridade. Por outro lado, necessita de ajuda para ter um canudo perto da boca para beber água, para trocar as fraldas, para se deslocar.

A existência de Diego não constitui um grande drama: ele aceitou a condição em que se encontra, e possui meios financeiros e laços afetivos suficientes para levar uma boa vida dentro das limitações evidentes. Assim, Organismo jamais envereda pelo melodrama, algo reforçado pela atuação sóbria de Rômulo Braga, um dos atores mais talentos do cinema brasileiro independente. Braga é capaz de parecer forte, agressivo e extrovertido quando necessário, porém consegue trabalhar com gestos mínimos, olhares potentes e expressão internalizada. O corpo, o rosto e a voz do ator se prestam a uma infinidade de personagens, que ele tem explorado muitíssimo bem em suas produções. Neste projeto, exige-se dele uma voz sem raiva nem piedade, um discurso que, ao falar de sua deficiência, descreva a rotina em tom desafetado que constitui, por si próprio, um posicionamento político e um ponto de vista forte sobre a alteridade.

Apesar do olhar humano, de igual para igual – o filme não se posiciona nem acima do personagem, utilizando-o como exemplo, nem abaixo dele, erguendo-o como mártir -, o resultado traz algumas escolhas curiosas de ritmo e roteiro. A narrativa ameaça enveredar por vários caminhos, até sabotá-los: primeiro, sugere que a infância de Diego terá um papel fundamental para compreender sua vida adulta, até as longas cenas do menino serem suspensas sem uma conclusão ou laço evidente com o comportamento atual. A religião é vista de modo crítico, enquanto forma de controle e restrição do corpo – percebida, deste modo, enquanto limitação à liberdade humana, análoga à deficiência – até o discurso sobre o cristianismo ser suspenso. O momento de abandono do personagem em casa, que parecia essencial à trama, só é trabalhado de fato no final, depois de uma montagem elíptica.

Em paralelo, para um projeto de tendência tão realista e contemporânea, próximo de uma realidade urbana de classe média de fácil identificação, Organismo surpreende por algumas escolhas artificiais de direção e roteiro. Primeiro, o filme demonstra a estranha tendência a prenunciar tragédias: antes de Diego perder o movimento do torso e dos membros, uma cena do jovem saltando de um prédio acena ao momento do acidente, Pouco depois, uma criança desenha o protagonista caindo de uma escada. Quando fica sozinho em casa, Diego assiste na televisão ao filme 127 Horas, no qual o personagem se encontra sozinho, obrigado a se mutilar. É curiosa a decisão de sublinhar a chegada do acidente. Talvez a escolha pretenda reforçar o suspense, no entanto dilui o peso do drama e do acaso.

Jeorge Pereira também utiliza alguns recursos pouco naturalistas, como a trilha sonora melodramática demais, alguns fades desleixados na edição, um tratamento de som que destaca excessivamente as falas em relação aos ruídos ao redor. Soa estranho ouvir Diego e a namorada Helena (Bianca Joy) conversarem numa sacada, em frente ao mar, com pouquíssimo barulho do ambiente. Uma cena de jantar soa conveniente, por retirar duas mulheres da sala no instante exato em que Diego deseja ficar sozinho com outra convidada. Já os trechos com as crianças transparecem certa artificialidade pelo excesso de diálogos e o reforço das cores quentes, costumeiros nos retratos nostálgicos, porém contrastantes com a luz das cenas presentes.

De modo geral, o resultado busca equilibrar o olhar realista sobre a deficiência com a composição lúdica, poética, que termina por diluir um pouco a força dos dois polos. Talvez, se assumisse com veemência uma das duas vertentes, poderia atingir resultados mais expressivos. Ainda assim, demonstra notável ambição estética e narrativa, especialmente para um diretor estreante em longas-metragens.