Na abertura desta sequência, Peter Parker (Tobey Maguire) é descrito como o protótipo do loser norte-americano. Ele fracassa em manter o emprego precário de entregador de pizza, em frequentar as aulas na faculdade, em dar atenção a Mary Jane (Kirsten Dunst), em conseguir dinheiro para pagar as contas. Seria fácil se identificar com este jovem sobrecarregado numa metrópole impiedosa se o motivo da sobrecarga não fosse a vida secreta de super-herói, que exige o resgate de criancinhas em perigo de vez em quando. Mesmo assim, a popularidade do herói está em baixa: o principal jornal o retrata como um arruaceiro, e o melhor amigo de Peter, Harry (James Franco) ainda enxerga o personagem mascarado como o responsável pela morte de seu pai. Ao tentar salvar o mundo e salvar a sua própria vida, o protagonista fracassa nas duas esferas.
É interessante notar que o principal motor narrativo se situa nos conflitos internos de Peter, Mary Jane, Harry, Doutor Otto (Alfred Molina) e tia May (Rosemary Harris). O super-herói estressado se vê numa pane de sua teia e de seus poderes de aderência diante dos arranha-céus da cidade. O problema não é causado pela ação de nenhum inimigo, muito pelo contrário: os dilemas de Peter são psicossomáticos. (Aliás, psicólogos devem se divertir com a ideia do jovem cuja impotência face ao mundo é representada pela incapacidade de liberar a sua teia, num misto de desejo reprimido e castração simbólica). Não por acaso, o protagonista frequenta uma inesperada sessão de terapia, escuta da tia que “existe um herói dentro de cada um de nós”- um encorajamento para o seu coming-out de super-herói – e tem a missão frustrada e recorrente de assistir à peça de teatro de Mary Jane, The importance of being earnest.
No Brasil, o texto de Oscar Wilde foi traduzido como “A importância de ser prudente”, mas talvez uma tradução mais fiel fosse “A importância de ser sincero/franco”. Este é o verdadeiro obstáculo de Peter Parker: ele precisa admitir ao mundo que sua dupla identidade, precisa revelar à tia o conflito com o tio Ben, precisa assumir o amor por Mary Jane, precisa confrontar Harry sobre o final trágico do pai. Estamos falando de traumas e recuperações, de insegurança masculina e do retorno do recalcado. Uma sintomática cena, no terço final, trata do confronto entre Peter e Harry em moldes tipicamente shakespearianos, com direito a uma adaga na mão e um duelo entre pessoas que se ama – momento muito mais emocionante, aliás, do que as inúmeras cenas de resgate de Mary Jane e tia May.
A propósito dos resgates, Homem-Aranha 2 se desenvolve como uma narrativa de super-herói bastante clássica, distante do caráter espetacular e épico que os filmes do gênero adquiririam quinze anos mais tarde. Hoje, Vingadores, X-Men e Liga da Justiça apostam na saturação de heróis, de vilões, de cenas descomunais com efeitos especiais intermináveis. No filme de Sam Raimi, temos um único mocinho contra um único vilão, algumas mulheres queridas a serem salvas, criancinhas em perigo dentro de um prédio em chamas, um trem repleto de habitantes prestes a cair no penhasco. Estes são motivos reincidentes do imaginário dos superpoderes (salvar o mundo e ficar com a garota), que o cineasta felizmente retrata com talento e com algumas modificações importantes.
Primeiro, Raimi efetua um ótimo trabalho de câmera: cada chegada do Dr. Octopus é coroada por belos movimentos pendulares ou circulares da imagem; as principais cenas de ação (menores em duração e quantidade do que as cenas introspectivas) ocorrem a dois, em espaços fechados; a câmera lenta empregada para ilustrar os estilhaços de vidro aproxima a linguagem dos quadrinhos. É verdade que os efeitos especiais se desenvolveram muito desde 2004, e que o chroma key desta produção não se compara com os blockbusters da década seguinte. Mesmo assim, funcionam adequadamente à necessidade de uma ação contida, que nunca interrompe o funcionamento do mundo lá fora. Quando o inimigo escala um prédio com suas garras, ou quando o Homem-Aranha percorre prédios e mais prédios, o resto do mundo não os percebe.
Segundo, o diretor sabe manter o ritmo de uma comédia de aventura, ágil sem fragmentar a montagem, e divertida sem recorrer às piadas infantojuvenis que apareceriam mais tarde na Marvel em Guardiões da Galáxia e Thor: Ragnarok, por exemplo. As cenas de ação estão a serviço dos personagens, e não o contrário. Neste sentido, chega a ser poética a decisão de situar o maior confronto entre Peter e Otto na esfera do diálogo, ao invés da luta: depois de brigarem, é com argumentos lógicos que o herói tenta dissuadir o inimigo de seus planos. Em outra cena, diante de um super-herói machucado, os habitantes da cidade protegem Peter e sugerem que o adversário precisará passar por eles primeiro. O ato heroico e espontâneo da multidão anônima resume a trajetória desta produção, baseada na dificuldade do Homem-Aranha em se acreditar digno de amar (no caso, Mary Jane) e de ser amado (pela cidade, pelos familiares) apesar de sua dupla identidade.
Homem-Aranha 2 constitui um belo filme do seu tempo – leia-se: antes da era dos smartphones e Internet disseminada por todos os lugares, antes das demandas de representatividade negra, feminina e LGBT, antes da gigantização dos modos de produção. Este é um projeto inocente, de narrativa simples, e talvez por isso pareça mais humano, mais próximo do espectador comum, antes da chegada dos playboys bilionários da Marvel, dos mutantes intergalácticos e dos vigilantes riquíssimos de Gotham. Esta trilogia inicial é desprovida de malícia, de pessimismo e do imperativo do caos. A maior parte das cenas se desenvolve de dia, resolvendo-se rapidamente, em pequenos grupos de pessoas. Efetua-se um pacto lúdico com o espectador, a quem se pede para acreditar na indiferença do mundo diante do duelo de figuras tão poderosas quanto o Homem-Aranha e Dr. Octopus. Raimi sustenta a ilusão de que esta é uma batalha dentro de um bairro como o nosso, envolvendo pessoas como nossos tios, tias e namorado(a)s. Assim acreditamos que, de fato, pode existir um super-herói dentro de cada um de nós.