Com O Quarto Ao Lado, Pedro Almodóvar levanta a única certeza da vida: a morte
por Giovanna RibeiroO Quarto Ao Lado, filme escrito e dirigido por Pedro Almodóvar, chegou até nós carregando algumas responsabilidades. Sendo o primeiro longa-metragem do cineasta espanhol todo em língua inglesa, ambientado em Nova York e protagonizado por Julianne Moore e Tilda Swinton, pode-se dizer que a obra parecia querer provar um ponto. Afinal, o que faz um filme ser um filme do Almodóvar, de DNA, cor e sabor tão característicos?
O que encontramos em O Quarto Ao Lado, foi, para além de algumas respostas contundentes a estas expectativas prévias, uma trama segura de si, de um cineasta que definitivamente já não precisa provar nada a ninguém há pelo menos algumas décadas. Seja lá qual for o idioma.
O Quarto Ao Lado apresenta as jornalistas Ingrid (Julianne Moore) e Martha (Tilda Swinton), que foram muito amigas na juventude, quando trabalharam juntas na mesma revista, mas que passaram longos anos sem manter contato. Ingrid se tornou uma escritora de auto ficção, já Martha virou correspondente de guerra, e ambas trilharam carreiras muito bem sucedidas.
As circunstâncias da vida e o trabalho desafiador de Martha, acabaram causando um afastamento natural entre as duas. Assim como gerou ressentimentos entre Martha e sua filha: ela nunca perdoou a ausência da mãe, que sempre preferiu se dedicar mais ao trabalho.
Até que a descoberta de uma doença terminal muda completamente a vida da jornalista de guerra e aproxima novamente as amigas. Em meio a esta situação extrema, de vida e morte, Ingrid e Martha também se veem diante de um dilema moral. Mas Almodóvar acerta já nos primeiros momentos do filme ao reverter a noção de moralidade e ao discutir abertamente a morte como um fato - e o mínimo controle sobre ela, como uma possibilidade.
Como você quer morrer? Almodóvar pergunta e responde
O Quarto Ao Lado é, sobretudo, uma história sobre eutanásia. E para chegar até lá, a trama explora referências e se serve de um banquete do cinema do próprio Almodóvar. No entanto, longe de ser um biográfico Dor e Glória, desta vez, é possível encontrar a marca do cineasta quase como um observador que se senta à mesa ao lado dos acontecimentos e que, ao ouvir fragmentos de um dilema, costura reflexões sobre a finitude da própria vida. E nesse lugar, estamos todos nós.
Na mesma “mesa”, também está a personagem de Julianne Moore. A escritora recebe a missão de ajudar a amiga de longa data a fazer valer o desejo de ter uma boa morte. O pedido inusitado, para Ingrid, é ainda mais irônico. A autora, que acabou de lançar um livro cujo assunto é a dificuldade de lidar com a morte, mesmo assim, não consegue virar as costas para Martha e precisará encarar o medo no fundo dos olhos da amiga doente.
Em um movimento quase óbvio, toda a trama se desenvolve assim: o que parece que vai acontecer, acontece. Tudo é colocado na superfície. As intenções e os conflitos triviais, ajudam a, justamente, desmistificar o conceito de eutanásia, em um processo praticamente didático. Tal como a vida, em sua rotina, escolhas, encontros e separações, a morte também é colocada em seu devido lugar: algo que acontece.
É preciso saber sofrer
Entre a vida e a morte - dois fatos inevitáveis e estreitamente interligados - também habita o sofrimento humano. O Quarto ao Lado não nos poupa disso e apresenta na tela, duas mulheres que encontram serenidade no sofrimento. E, no conforto desta amizade íntima, buscam decifrar a tragédia com uma curiosidade jornalística. Para tanto, Ingrid e Martha saem da cidade, e alugam uma casa ampla e isolada. A proposta é simples: Martha decidirá o dia e a forma de sua morte, enquanto a amiga permanecerá no quarto ao lado.
Assim, as duas jornalistas adotam a presença da morte, convidando a temida força da natureza para dividir o mesmo espaço. Dia após dia, convivem com ela, podendo ser sempre aquele, um último dia. Especialmente para Ingrid, conviver com o câncer da amiga se torna uma espécie de entrevista com a morte. Ambas passam a compartilhar um mesmo cotidiano, confissões e ânsias. Longe de ser uma espera necessariamente melancólica, Martha desfruta de seus interesses e mapeia tantos os arrependimentos quanto os acertos de quem viveu da maneira que quis.
Nesse processo, a obra retoma também o clássico conflito entre mãe e filha. Seria uma sentença de morte, uma oportunidade para retomar vínculos perdidos ou, esse momento precisa, em si, ser uma estrada solitária? Há tempo para dizer o que nunca foi dito? Perdoar o imperdoável? Nem tudo Almodóvar responde. Pois, mesmo que a vida e a morte pareçam óbvias, elas não são tão simples.
Melhor do que estar só, é estar bem acompanhado
Se é possível dizer que Martha jamais conseguiria alcançar seu objetivo final, sem a ajuda da amiga Ingrid, podemos dizer que Pedro Almodóvar jamais conseguiria alcançar o que - felizmente - alcança nesta obra, sem as qualidades de Julianne Moore e Tilda Swinton, que dispensam grandes comentários. A dupla de vencedoras do Oscar entrega o que se espera, diante de suas filmografias extensas. Esta, que é a segunda colaboração de Swinton com Almodóvar - a atriz protagonizou o curta A Voz Humana - se mostra ainda mais lapidada e em perfeita sintonia.
Nesse sentido, O Quarto ao Lado - que é baseado no livro O Que Você Está Enfrentando, de Sigrid Nunez -, prova a importância de se estar bem acompanhado. O filme, grande vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza 2024, ainda conta com John Turturro, Alessandro Nivola e Juan Diego Botto no elenco.
O Quarto ao Lado se estabelece como uma obra bem característica de seu cineasta. Isso, vale dizer, pode ser uma grande virtude - especialmente para os fãs do estilo presente na filmografia do espanhol -, como também um ponto fraco. Mas, definitivamente, não se trata de uma contradição. Quem espera sempre ser necessariamente surpreendido nos cinemas, precisará lidar com uma certa frustração. A grande questão é que O Quarto ao Lado não é um filme sobre surpresas, reviravoltas ou abstrações. É sobre certezas.
Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024.