Um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos retorna mais de 15 anos depois: Continuação é um prato que se serve frio?
por Aline PereiraEstômago, de 2008, é uma obra-prima do cinema brasileiro: todo o entrelace na narrativa que acompanha a história de Raimundo Nonato (João Miguel) e sua relação com a comida é espetacular porque une uma reflexão social, econômica e psicológica a um visual marcante e um alto poder de entretenimento e conexão direta com o público. Com tantas qualidades – e sucesso –, a notícia de que o longa ganharia sequência mais de 15 anos depois até foi inesperada, mas não surpreendente.
Estômago 2: O Poderoso Chef está inserido em uma gigantesca onda de continuações, remakes, spin-offs entre outros “reaproveitamentos” de histórias e personagens já conhecidos. Ao mercado, faz todo o sentido: apostar no que o público já conhece costuma ser uma jogada segura para os estúdios. Criativamente, as questões são outras e há o risco número um no caso de obras já consagradas como essa: como elevar, ou pelo menos segurar, a qualidade do que foi feito antes?
Estômago 2 não segue pelo caminho “óbvio”
No filme de 2024, voltamos à penitenciária onde Raimundo, conhecido como Alecrim, havia sido preso no primeiro filme. Etcetera (Paulo Miklos) ainda está por lá e é o chefão entre os criminosos, mas a chegada de uma nova figura vem para abalar a hierarquia do poder: o mafioso italiano Don Caroglio (Nicola Siri) entra na disputa pelo poder e, assim como Alecrim, tem uma habilidade especial: é um grande cozinheiro.
O final do primeiro longa do diretor Marcos Jorge deixou muito em aberto: Alecrim conquistou os colegas de prisão pelo estômago e tudo parecia indicar que a posição de chef seria essencial para ajudá-lo não só a sobreviver, mas a ascender naquele meio – tínhamos, afinal, um protagonista que chegou ao fim da história como um anti-herói nada ingênuo e moralmente questionável. Na sequência, no entanto, encontramos uma versão do personagem que não se parece muito com aquele que vimos anos atrás, mas também não há uma grande explicação sobre o que houve com ele nesse meio do caminho.
O Alecrim do primeiro filme tinha tudo para ser uma figura mais ligeira na penitenciária e, tantos anos depois, a sensação é de que ele se manteve brando, mais ou menos no mesmo lugar. Apesar de utilizar suas habilidades culinárias para conquistar alguma confiança tanto dos outros presos quanto dos funcionários do lugar, Alecrim parece muito mais distante agora, o que deixa o caminho livre para o novo personagem de Nicola Siri.
Sequência tem novo protagonista e diminui presença de Alecrim
Don Caroglio é o verdadeiro protagonista de Estômago 2 e seu intérprete, inclusive, dividiu com João Miguel o prêmio de Melhor Ator na 52ª edição do Festival de Cinema de Gramado, onde o filme estreou e levou uma enxurrada de troféus. Toda a trama do longa gira em torno dele, de sua trajetória de vida e das decisões que toma – e foi assim que Alecrim se tornou um coadjuvante de sua própria história. A bem da verdade, penso que pouquíssima coisa mudaria mesmo se ele não estivesse presente no filme. A briga entre o mafioso e Etcetera é o ponto que movimenta a ação e a ligação de Raimundo com essa questão parece frágil.
É como se, em vez de uma sequência, Estômago 2 fosse mais como um spin-off, que parte do mesmo universo de seu antecessor para contar uma nova história. Única e exclusivamente para efeito didático de comparação, seria como a conexão entre Breaking Bad e seu derivado Better Call Saul: mesmo mundo, mas caminhos completamente distintos e intersecções ocasionais. É uma escolha criativa que pode cutucar alguns apreciadores do longa original (é o meu caso), mas, isoladamente, isso não é um problema.
Italiano como seu personagem, Nicola Siri é um ótimo antagonista e não demora a nos convencer de que é um figurão sinistro da máfia – inclusive, parece ser um “vilão” muito mais ameaçador do que o atrapalhado Etcétera, o que dá à dinâmica entre os dois um viés mais cômico. Assim como no filme original, Estômago 2 nos conta duas histórias ao mesmo tempo, alternando entre a presença de Caroglio na prisão e sua vida conturbada fora dela, tendo a relação com a comida ainda como parte importante do coração do filme.
Para evitar spoilers e revelações demais, me limito agora a dizer que a ideia de “conquistar pelo estômago” ganha outros porquês e, com a origem do personagem, a questão ganha também um novo fundo visual e cultural – aqui, sim, um ponto incômodo. Falta um tempero brasileiro na história: com coparticipações internacionais na produção, Estômago 2 é uma obra feita obviamente com mais dinheiro e mais ambições técnicas.
Nesse sentido, fiquei com um gostinho bem amargo de estar acompanhando uma fórmula hollywoodiana que não alcançou o impacto do longa original em termos de inventividade, riscos e originalidade no roteiro. Temos um “filme de máfia” tecnicamente bem executado e que cumpre bem seu papel como entretenimento – é difícil perder o interesse muito antes do final –, mas que também não faz brilhar os olhos. No fim das contas, a presença de João Miguel faz muita falta.
O crescimento do personagem no filme original e todos os conflitos aos quais Nonato foi exposto, da ingenuidade ao crime tenebroso que comete no fim, são o que torna Estômago uma grande história e os momentos dele na continuação não nos deixam esquecer desse passado glorioso e sentir nostalgia por ele.
Imagino que para aqueles que assistirem ao segundo filme sem ter visto o primeiro talvez se divirtam mais. Aliás, vale notar aqui que é perfeitamente possível assistir a Estômago 2 sem ter visto o original sem perdas significativas na compreensão geral da história. Há bons momentos e as viagens da trama à Itália de Don Caroglio têm seu charme, mas o humor certeiro e o clima caótico da vida de seu protagonista são ausências a serem sentidas.
É comum às sequências que queiram retornar maiores e melhores que seus filmes anteriores, mas isso tem muito menos a ver com o aumento de ação, cenários suntuosos e conflitos em grande escala do que os estúdios parecem acreditar. A proposta de personagens queridos pode ser sim muito bem-vinda, mas nem todo banquete cenográfico é melhor do que um arroz e feijão bem feitinho.