No contemplativo O Mal Não Existe, diretor de Drive My Car provoca o público sobre preservação da natureza
por Bruno Botelho dos SantosRyûsuke Hamaguchi é um dos diretores mais interessantes e renomados da atualidade. Ele ganhou ainda mais visibilidade após o lançamento de Drive My Car (2021), que concorreu à Palma de Ouro em Cannes e levou três prêmios no festival – além de, ainda por cima, ter recebido quatro indicações ao Oscar, vencendo como Melhor Filme Internacional. Depois desse sucesso, Hamaguchi confronta o público com seu novo filme O Mal Não Existe, uma produção contemplativa e provocativa.
Em O Mal Não Existe, Takumi (Hitoshi Omika) e sua filha, Hana (Ryo Nishikawa), moram na vila de Mizubiki, perto de Tóquio. Apesar da vida pacata, um dia os moradores acabam descobrindo a existência de um plano para construir um acampamento próximo à casa de Takumi, oferecendo aos moradores da cidade uma “fuga” para se conectar com a natureza. No entanto, o que pode ser bom para alguns é o pesadelo de outros, pois isso afeta diretamente suas vidas.
Equilíbrio da natureza é perturbado em O Mal Não Existe
O Mal Não Existe começa de forma contemplativa, num longo trecho que coloca o público no meio da floresta em contato direto com a natureza. Uma introdução bastante representativa sobre as intenções do filme de explorar essa relação dos seres humanos com o meio ambiente. Somos apresentados ao protagonista Takumi, que leva uma vida simples de subsistência no ecossistema natural dentro da vila de Mizubiki.
Não demora para o roteiro, escrito por Ryûsuke Hamaguchi em colaboração com Eiko Ishibashi, chegar à discussão principal. Tudo começa quando representantes de uma agência de talentos em Tóquio fazem uma apresentação para os moradores da vila, revelando os planos da empresa para glamping na região, termo para acampamentos de luxo destinados a turistas que desejam se isolar em florestas ou cabanas, por exemplo.
É aqui que surge o principal ponto de conflito em O Mal Não Existe. Os moradores percebem que a corporação não tem a intenção de montar os acampamentos de forma responsável com a comunidade local, visando apenas o lucro rápido, o que afetará o equilíbrio ecológico da região e condição de vida das pessoas.
A tranquilidade e equilíbrio da natureza na cena inicial em pouco tempo é perturbada pela ação humana. Ryûsuke Hamaguchi faz uma clara e contundente crítica ao capitalismo, especialmente num período pós-pandemia – que também está contextualizado na trama com a empresa de glamping interessada no subsídio. O filme mostra como a relação humana e corporativa visando o lucro representam um modo de vida insustentável para nossa sobrevivência como espécie e do meio-ambiente.
O Mal Não Existe? Ryûsuke Hamaguchi provoca o público com sua observação sobre a natureza
Desta forma, a história de O Mal Não Existe é sobre a luta de uma comunidade local contra essa invasão humana corporativa com objetivos financeiros, um esquema muito bem representado na cena de apresentação do projeto por Takahashi (Ryuji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani). Além de mal estarem preparados e apresentando interesses que não são necessariamente deles, existe um conflito de ideias, com os moradores expondo todas as suas preocupações com essa interferência externa. Enquanto, do outro lado, nada disso parece estar nos planos e propostas.
Hana, interpretada por Ryo Nishikawa, é uma personagem muito importante na narrativa pela sua relação pura vivendo na natureza com seu pai. Por isso, Ryûsuke Hamaguchi usa seu desaparecimento como um ponto de mudança fundamental no enredo, como uma ruptura no relacionamento entre os humanos e o ecossistema.
Hamaguchi conduz tudo com muita leveza, inclusive seus momentos mais cômicos, mas sempre fica a sensação estranha e desconfortável de um conflito iminente que cresce conforme os interesses conflitantes se tornam insustentáveis e explodem para a violência. O filme não está necessariamente preocupado em desenvolver os seus personagens: na realidade, eles servem mais como personificações para a temática desenvolvida.
Final surpreendente de O Mal Não Existe explode em violência e não vai agradar a todos
Enquanto caminha para seu trecho final, O Mal Não Existe deixa de lado a contemplação que o público acompanhou e parte para uma reviravolta surpreendente, sombria e violenta que não irá agradar a todos. Não apenas pela mudança brusca de tom, mas também por ser um encerramento que não entrega explicações fáceis para o público – permitindo diferentes interpretações.
De qualquer forma, Ryûsuke Hamaguchi é corajoso em sua conclusão, que ela era inevitável para a narrativa que vinha sendo desenvolvida ao longo de 1 hora e 46 minutos de duração. Ele alerta sobre qual é nosso papel em relação à questão ambiental. O diretor revelou em entrevistas que o título "O Mal Não Existe" partiu de sua observação da natureza e sensação de que nela não existia nenhum mal. Por isso, é interessante como ele mesmo reafirma essa ideia na produção: Não existe nenhum mal na natureza, mas o problema está na forma como lidamos com ela.
Vale a pena assistir O Mal Não Existe?
Depois do sucesso e aclamação com Drive My Car, O Mal Não Existe reafirma o nome de Ryûsuke Hamaguchi como um dos melhores e mais interessantes cineastas da atualidade, com um filme denso e contemplativo que apresenta uma discussão necessária sobre preservação ambiental – especialmente em tempos de emergência climática. Conforme o filme passa, a tranquilidade da natureza se transforma em um final violento e provocativo, que promete não deixar ninguém indiferente.
*O AdoroCinema assistiu ao filme durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.