Com grande atuação de Hugh Grant, Herege se credencia a melhor filme de terror do ano
por Rafael FelizardoSem sombra de dúvida, em diversos pontos, a história do cinema e do terror se entrelaçam de maneira indistinguível. Se desde o início dos tempos o medo do desconhecido mostrou-se uma emoção primária na essência humana, não à toa, o horror cinematográfico consegue cativar tantas pessoas, que buscam reviver experiências mais primitivas com este tipo de obra.
Com isso em mente, não é absurdo algum afirmar que assistir a um filme de terror é um evento quase ritualístico. É bem provável que Sigmund Freud ou outro psicanalista tenha muito a dizer sobre a procura quase masoquista pela tensão frente às telas - e se tensão buscamos, nos últimos anos fomos extremamente felizes.
De 2020 para cá, o terror vem se reinventando de maneira extremamente criativa, rompendo com um marasmo que assolou consideravelmente parte de épocas passadas. Para se ter ideia, só em 2024, títulos como Entrevista com o Demônio, A Substância, Stopmotion, Longlegs e mais fizeram acelerar o coração dos espectadores pelo mundo - sempre respeitando os clássicos, mas impondo elementos próprios que deram frescor ao gênero.
Dentro dessa perspectiva, 2024 ainda tem a apresentar ao público quase uma última cartada. Os cineastas Scott Beck e Bryan Woods deram à luz um longa-metragem brilhante intitulado Herege - protagonizado por Hugh Grant, Chloe East, Sophie Thatcher e com o selo de qualidade conhecido da A24.
Há uma imprevisibilidade cativante em Herege
Na trama, somos apresentados à história de Paxton e Barnes, duas jovens missionárias mórmons que passam o tempo tentando recrutar novos fiéis, mas a tarefa parece impossível. Um dia, ao pararem em uma casa isolada, elas conhecem o Sr. Reed, um homem que aparenta estar genuinamente interessado em ouvi-las. Quando diversos elementos da calorosa recepção começam a passar a mensagem de que a situação talvez seja mais perigosa do que parece, as duas precisarão confiar na fé se quiserem sobreviver.
Um dos pontos altos de Herege é a sempre presente imprevisibilidade de seu enredo. Diferentemente de outras obras do gênero, o longa a todo o momento mantém o espectador com um ponto de interrogação na cabeça, sem saber qual será a próxima direção seguida. Com um ritmo de narrativa preciso, Herege em momento algum dá um passo maior do que a perna ou quebra com seu andamento, gerando uma inquietação constante a quem o assiste que é quase terapêutica.
Além disso, como todo bom terror psicológico, a ambientação contribui maravilhosamente bem para a forma com que os diretores resolveram contar sua história. A atmosfera sempre soturna, quase sufocante, encontra seu porto seguro na mente do desviado Sr. Reed - um homem que, assim como a trama, possui um prazer sombrio em manipular o próximo. Se no passado Hugh Grant ficou conhecido por seus papéis de mocinho nas comédias românticas, é possível afirmar que nos últimos anos o ator vem tentando quebrar com esse paradigma, entregando em Hollywood uma bem-vinda cota de personagens mais perturbados.
Hugh Grant consolida sua carreira como vilão com Herege
Em Herege, Grant dá vida a um personagem que se comporta quase como um vilão dos filmes de 007. Com uma arrogância ao estilo Silva (lembra de Javier Bardem em Skyfall?), Reed é um personagem manipulador que confia em seu suposto intelecto para sempre controlar o ambiente, mantendo-se um passo à frente em relação às vítimas - e a nós.
Com uma cota de monólogos no enredo, as longas palestras de Reed em momento algum cansam o espectador, principalmente por se conectarem com elementos mais casuais que permeiam a vida do público. Entre questões existenciais complexas e debates religiosos, o roteiro consegue introduzir superficialidades como Banco Imobiliário - isso mesmo - e até Radiohead, quebrando com a densidade e funcionando como um bem colocado elemento narrativo.
Ao lado de Grant, Chloe East e Sophie Thatcher também casam perfeitamente bem com suas interpretadas, dando vida a protagonistas que se mostram muito mais interessantes do que o inicialmente esperado. No fim das contas, Herege oferece ao ouvinte uma afiada batalha do homem contra o homem, deixando de fora o sobrenatural, sustos e outras variáveis que estamos acostumados a esperar de um filme de terror.
Herege definitivamente é um filme da A24
Produtora conhecida por seu primor técnico, a A24 entregou, através dos anos, obras extremamente aclamadas do ponto de vista técnico. O estúdio é conhecido pela liberdade que proporciona a seus cineastas, resultando em produções que conseguem romper com o óbvio ululante - assim como diz Nelson Rodrigues.
Com uma fotografia bonita, enquadramentos deslumbrantes e transições criativas, Beck e Woods conseguiram comprimir todos os âmbitos do longa em um produto sólido, tornando Herege tecnicamente impecável. Vale ressaltar que, em 2019, os diretores já haviam comandado juntos o elogiado A Casa do Terror, transformando-os em nomes extremamente promissores na indústria cinematográfica.
A escolha dos diretores de construir o filme quase como uma peça de três atores também se mostra acertada, deixando claro que para o desenvolvimento de uma boa narrativa, por vezes, menos é mais. Beck e Woods constantemente alfinetam os nervos do público através de elementos secundários em tela, como o gotejamento da água em um mecanismo de bambu, o zumbido das luzes e até mesmo livros peculiares nas prateleiras.
Herege fala sobre religião, mas não é sobre religião
Retornando à psicanálise citada no início deste texto, ouso dizer que o Sr. Reed seria um prato e tanto para um terapeuta experiente. Seu complexo de Deus é palpável sob a atuação de Grant - uma gostosa ironia, visto que o personagem mostra-se um tanto quanto cético em relação à religiosidade. No fim das contas, Herege desenvolve Reed para entregá-lo, no fim, como um homem mesquinho, preso tanto à fé cega de suas convicções intelectuais que se comporta como um fanático.
Tranquilamente afirmável, Herege é o roteiro mais desafiador que Beck e Woods já escreveram. O filme inicia com o pé em um debate religioso que de fato poderia ser repetitivo, mas o desenrolar rompe com as expectativas e mostra uma outra perspectiva em relação ao assunto. Aqui, não temos a religião mostrada sob o viés da irracionalidade, mas sim a irracionalidade de um homem que se julga descrente.
E para finalizar, para não dizer que sou só elogios a Herege, posso testemunhar que há uma sequência de eventos no terceiro ato, mais especificamente no porão de Reed, que criativamente não me convence tanto. Ali, acredito que o longa destoe em relação ao resto da trama - mas não o suficiente para me deixar incomodado. Talvez, essa queda até faça com que a última cena do filme seja ainda mais especial - um desfecho que, ao meu ver, não poderia ser melhor.
*O AdoroCinema assistiu ao filme no Festival do Rio 2024.