Ambientado nos anos 90, romance adolescente brasileiro tem, sim, muito coração
por Giovanna RibeiroExiste uma expressão popular que dá conta de descrever, perfeitamente, a situação de se ver diante de algo incômodo, e grande demais para ser ignorado. O elefante branco - ou, para alguns, o elefante na sala - representa esta coisa pouco prática, difícil de ser sustentada, irritante e impossível de desviar o olhar.
No entanto, a expressão ainda não dá conta de explicar quando nós somos o próprio elefante na sala dos outros. Sentimento que pode ser até mais duradouro na vida de alguns, mas é generalizado quando falamos da adolescência.Temos, assim, uma briga de elefantes em uma sala minúscula.
Trazer a vivência adolescente para o audiovisual, considerando que os realizadores são pessoas adultas, distantes dessa pulsão e fúria que só uma pessoa com pouco mais de uma década de vida conhece tão bem, é sempre um desafio. Por vezes, há pudor demais. Ou quando não, há condescendência. O que, vale dizer, é uma tragédia. O adolescente, em síntese, quer ser visto e se ver, de alguma forma. Perdem-se oportunidades.
Nesse sentido, ao nos depararmos com uma obra - vale dizer, LGBTQIAPN+- tão sincera e escancarada quanto Sem Coração, filme de Nara Normande e Tião, selecionado para o Festival do Rio de 2023 - onde venceu o Redentor de Melhor Fotografia e o Prêmio Félix de Melhor Filme -, se faz necessário exaltar, primeiramente, a eficiência. Mas, felizmente, não só.
Uma jornada de amadurecimento
Sem Coração se passa durante o verão de 1996, no litoral de Alagoas. Tamara (Maya de Vicq) está aproveitando suas últimas semanas na vila pesqueira onde mora, antes de partir para fazer cursinho e se preparar para entrar na Universidade, em Brasília. A menina, que sempre viveu livre, em uma família estimulante, e cercada de amigos, enfrenta o maior dilema de sua vida: aquele fatídico momento de deixar a infância para trás definitivamente, e mudar - de forma irreversível.
Para adicionar mais um elemento ao impasse de Tamara, um dia, a garota ouve falar de uma adolescente apelidada de "Sem Coração" (Eduarda Samara) - por causa de uma cicatriz que ela tem no peito. Ao longo do verão, Tamara sente uma atração e um interesse crescente por essa menina misteriosa. E medo. Sentimento que, assim como um elefante na sala, ou uma baleia encalhada na praia, também é impossível de ignorar.
A “Sem Coração” surge para Tamara, como os primeiros amores surgem: quase como uma resposta a orações silenciosas e aos sonhos infantis. Ama-se intensamente, como se aquela pessoa diante de nós, fosse perfeita. Porque é. E assim como a decisão irreversível de mudar para Brasília, é capaz de assustar profundamente Tamara, a descoberta de uma paixão causa o mesmo efeito: é definitiva e definidora.
A partir daquele encontro, Tamara já é outra. Mesmo que geograficamente, seja possível voltar, ela conseguiria voltar?
Elenco de Sem Coração combina atuações poderosas
Sem Coração, por ser sincero, também é literal. Se quer falar dessa descoberta do mundo, mostra-se. Se quer falar da sexualidade, em sua forma mais inexperiente e precária, mostra-se. Os adolescentes do longa-metragem não são poupados de nada - e o público também não. A masturbação sem o menor constrangimento, o sexo improvisado, tudo se desenrolando em um mesmo terreno afetivo, onde a amizade e a paixão se combinam - e a moralidade costuma vir depois.
Nesse micro universo litorâneo, os personagens navegam por muitos mares, sem deixar espaço para superficialidades, em uma brutal sensibilidade, de que a vida é feita. No entanto, as relações são simples: de quando as burocracias não se colocam no caminho. As questões de classe, de gênero, raciais e de orientação sexual não atravessam aqueles vínculos, tão primários e fraternais. Embora isso não signifique que o mundo ao redor deixe de percebê-las. E no processo de descoberta do mundo, descobre-se também a violência.
Para além de Maya de Vicq e Eduarda Samara, o longa-metragem também conta com atuações pesadas - como forças da natureza - de nomes como Alaylson Emanuel e Kaique Brito. Que são perfeitamente equacionadas com presenças como a de Maeve Jinkings, que dá vida à mãe de Tamara. A atriz de DNA do Crime e Os Outros, em Sem Coração, é calmaria e atenção. As forças se combinam e nada fica fora do lugar. Se os jovens atores são tempestades de verão, Maeve Jinkings é o disco de Bethânia tocando na sala de estar.
Alaylson Emanuel e Kaique Brito, Galego e Binho, respectivamente, são os responsáveis por experimentarem na pele, que esse medo diante da vida adulta, é justificável. Sobretudo, quando se habita corpos especialmente vulneráveis. E mesmo ao acompanharmos com extrema proximidade e intimidade a história de Tamara, em nenhum momento é possível dar as costas às outras histórias. Porque enquanto Tamara busca se entender por dentro, ela olha com atenção ao redor, durante todo o tempo. E nós olhamos junto.
A melancolia de viver “sem coração”
Enfim, a concretização dessa paixão não é eufórica. E se dá em meio a um luto - literal e simbólico, da perda de uma inocência, de uma zona de conforto tão familiar. O encontro entre Tamara e Sem Coração é suave e intuitivo - e vale dizer, a intuição sussurra. E supera o medo.
Nara Normande e Tião já haviam mostrado que não vinham a passeio, no curta-metragem Sem Coração. Vencedor de "Melhor curta-metragem" na Quinzena dos Realizadores, mostra paralela do Festival de Cannes 2014. Mas na versão em longa-metragem, a dupla consolida a história como uma aquisição importante ao corredor seleto de grandes obras contemporâneas do cinema nacional. E vão além, ao agora, contar uma história de amor entre duas meninas.
Sem ignorar questões técnicas, ocasionadas pelo esforço estético ousado que o filme realiza, Sem Coração é um filme quase perfeito. E falo, sobretudo, em tom de elogio. Se fosse perfeito, seria, contraditoriamente, menos autêntico, pois até suas imprecisões técnicas, ornam em sintonia com as inconsistências da fase da vida que ele se propõe a contar.