Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
O Outro Lado do Vento

Túnel do tempo

por Francisco Russo

Em pleno 2018, 33 anos após sua morte, eis que surge um Orson Welles inédito. É impossível analisar O Outro Lado do Vento sem mencionar sua complicada produção, que fez com que o diretor rodasse mais de 100 horas ao longo de seis anos para, após uma disputa judicial sobre os direitos de produção, abandonar o projeto. O falecimento de Welles em 1985 parecia ter sepultado de vez o longa-metragem, recuperado décadas depois por uma campanha de financiamento coletivo que resultou no embarque imediato da Netflix. Com a aprovação da viúva (e atriz) Oja Kodar e supervisão dos produtores Frank MarshallPeter Bogdanovich (também ator), O Outro Lado do Vento enfim ganhava vida.

Diante de tal histórico, é inevitável dizer que O Outro Lado do Vento é absolutamente anacrônico em relação ao cinema contemporâneo - e, também, por isso, fascinante. A partir da narrativa com ecos da vida pessoal de Welles, ao trazer um diretor de cinema veterano que enfrenta dificuldades para rodar seu último longa, o filme entrega uma textura rara de se ver na atualidade, em um ambiente extremamente cínico picotado por uma edição rigorosa e precisa. Basta reparar na intencional confusão inicial, onde dezenas de personagens secundários e terciários expressam opinião sobre o protagonista e o cinema em si. Mais que o dito, Welles está interessado em ali estabelecer a fauna que gira em torno de Hollywood, em sua variada gama de interesses, bajulações e sordidez.

Welles, é claro, também envia seus recados à indústria. O diretor em questão, J.J. Hannaford (o saudoso John Huston, em boa atuação), é apontado como o "Murnau do cinema americano", na ativa desde o cinema mudo, alguém cujo método sensorial de trabalho não se adequa ao status quo programado e didático que os executivos tanto gostam, para que possam domar seus talentos e controlar os gastos - definição precisa do impacto provocado pelos diretores da Nova Hollywood, nos anos 1970. A incompreensão do executivo ao assistir o trecho já filmado de "O Outro Lado do Vento", com um assessor do diretor atônito nas justificativas acerca dos atrasos nas filmagens, é reflexo do que o genial e genioso Welles já viveu tantas vezes ao longo de sua carreira. Paralelamente, o filme entrega uma reverência ao talento de seu protagonista sem esconder os problemas intrínsecos de sua desorganização, que já o levaram à falência e, mais uma vez, interferem em um longa-metragem. Welles, novamente, assume sua persona cinematográfica.

Diante de tamanha metalinguagem, chega a ser irônico que este filme sobre um longa-metragem inacabado tenha também permanecido incompleto por tanto tempo. Entretanto, assisti-lo com tamanha distância ressalta, ainda mais, o domínio de linguagem cinematográfica por seu diretor. Ao mesclar imagens em preto e branco e coloridas, rodadas em diferentes formatos e tamanho de tela, Welles compõe uma ambientação hipnótica que promove a imersão do espectador disposto a pensar, cuja proposta lembra o feito por Antonioni no clássico A Noite (1961). O cinismo onipresente aliado ao recorte constante de imagens ajudam a compreender tal universo, onde o talento é exaltado sem deixar de lado os problemas de ego intrínsecos, de forma a expôr as entranhas do cinema.

Entretanto, por mais que o entorno de Hannaford seja sempre interessante, o auge de O Outro Lado do Vento é quando o filme dentro do filme é exibido. Escancarando um imponente fullscreen a cores, Welles entrega imagens belíssimas que pulsam fortemente no tom da sensualidade e do magnetismo de seus atores. Sem qualquer diálogo, o exibido faz jus à citação a Murnau ao entregar um cinema fortemente inspirado no expressionismo, que ainda por cima promove uma inversão de gênero ao entregar à mulher não apenas a atitude, mas também a liberdade sexual. Brilhante.

Anacrônico a tudo que é feito nos dias atuais, O Outro Lado do Vento é resquício de um tipo de cinema autoral onde não basta mostrar ou dizer, é preciso também sentir. Mesmo diante de tantos problemas, Welles ainda oferece um punhado de propostas muito interessantes dentro de uma narrativa autobiográfica que, por vezes, soa intencionalmente confusa devido ao excesso de personagens. Como exemplo, basta reparar na forma como ele retrata o parabéns pra você a Hannaford, com a câmera posicionada de forma a multiplicar as velas presentes no bolo de aniversário, ou mesmo no posicionamento milimetricamente calculado nas cenas do filme dentro do filme, de forma a controlar a nudez de forma a manipulá-la junto ao espectador. Mais uma vez, brilhante.