Romance peca no ritmo, mas compensa nos contrastes
por Diego Souza CarlosUm dos mais prolíficos do mundo, o cinema brasileiro é extenso, rico e cheio de histórias únicas. Ao receber constantemente uma enxurrada de produções internacionais nas telonas e na TV, o público geral pode não conhecer a vastidão inserida nestes 125 anos de história, mas a indústria nacional é cheia de talentos e surpresas. Neste emaranhado de projetos, entre erros e acertos, Perdida é um destes filmes que vai surpreender a audiência com seu potencial de expandir um cenário naturalmente rico.
Sob direção de Katherine Chediak Putnam (Inferno) e Dean Law (O Ritual do Livro Vermelho), o longa acompanha a história de Sofia (Giovanna Grigio), uma garota moderna e independente que teme apenas um assunto: o amor. Após utilizar um celular emprestado, algo misterioso acontece e ela é transportada para um mundo diferente, que se assemelha ao século XIX. Apesar de ser acolhida pela família do encantador Ian Clarke (Bruno Montaleone), ela passa a viver nesta nova realidade enquanto tenta desesperadamente encontrar uma forma de retornar à sua vida antiga.
Adaptação do best-seller homônimo de Carina Rissi, o longa não poupa referências ao universo de Jane Austen, escritora inglesa conhecida por um repertório tomado por clássicos da literatura, como Orgulho e Preconceito, Emma, Razão e Sensibilidade, entre outros. Suas obras já foram adaptadas por diversos realizadores, mas para Perdida, Austen funciona com inspiração e referência.
A BELEZA E OS TROPEÇOS NO CONTRASTE
Ao chegar em um universo completamente diferente do que está habituada, Sofia estranhamente demora um pouco para perceber que não está no século XXI. Viagens no tempo e suas consequências! Na verdade, o que o público vai decifrar ao longo da narrativa é que aquele lugar não está, necessariamente, vinculado ao que conhecemos historicamente do século dezenove. Trata-se de uma outra realidade, uma outra dimensão, que se baseia em alguns aspectos do que se conhece da época.
Essa mudança da obra original para o longa-metragem tem um motivo. Após alguns questionamentos sobre a ausência de fatos históricos inerentes ao período, a alternativa da adaptação foi criar algo novo, portanto tratamos esse lugar como outro mundo, outra realidade. Para que essa ideia se torne ainda mais lógica dentro de novos termos, há uma clara inspiração no que Shonda Rhimes criou em Bridgerton: personagens de diversas etnias se reúnem e convivem sem as conhecidas amarras da sociedade de 1830. Na década em que a história acontece, por exemplo, a escravidão estava décadas longe de acabar no Brasil. Todavia, isso é deixado de lado em razão deste novo universo.
Essa decisão que remete instantaneamente à série da Netflix é um ponto interessante, ainda que não seja totalmente explorada. Sua superficialidade é ofuscada pelo verdadeiro foco narrativo, voltado, principalmente, aos avanços sociais das mulheres da época para a mulher moderna. Com sutis, mas válidos efeitos, Sofia chega como uma libertadora das regras pudicas e dos bons costumes. Não que o discurso se sobressaia à trama romântica entre ela e Ian, mas é nas interações entre as personagens femininas que o filme brilha e promove encanto.
A chegada da protagonista já causa uma ruptura no modus operandi da família Clarke e de todos que a orbitam: aos poucos, a irmã do mocinho, Elisa (Nathália Falcão), percebe suas próprias virtudes, enquanto Valentina, uma amiga da família interpretada por Emira Sophia, consegue quebrar o vínculo problemático com a avó e protagoniza uma das cenas mais emblemáticas do filme. Até mesmo Teodora Moura, antagonista vivida por Bia Arantes, começa a perceber que foi moldada por uma sociedade na qual sua única função é encontrar o marido ideal.
Essas interações entre Sofia e as demais personagens também são responsáveis por picos de humor em Perdida. No mais, a principal atriz a carregar tranquilamente o status da comédia no longa é Luciana Paes, intérprete da imprevisível Abigail. Conhecida por seu humor escrachado, a artista tem aparições breves, porém hipnotizantes. Como condutora da narrativa, acaba tornando trechos obrigatoriamente expositivos em momentos de riso.
FOTOGRAFIA E ASPECTOS TÉCNICOS
Conforme dito por Giovanna em uma entrevista ao AdoroCinema, os aspectos técnicos de Perdida são de encher os olhos. De volta ao elemento que traz o maior diferencial para o filme, o fato de ser um longa de fantasia produzido no Brasil, é interessante imaginar como o longa pode trazer novos olhares para o gênero no país. O figurino digno de qualquer produção hollywoodiana faz jus à época da trama, assim como a ambientação. Não são tantos cenários distintos quando Sofia está em outra realidade, mas as paisagens naturais reservam um mistério inebriante e contribuem para o clima de romance e conto de fadas da narrativa.
Nada disso seria possível sem a presença da direção de fotografia, conduzida por Jacob Solitrenick (Hoje), que consegue equilibrar e transmitir as emoções dos personagens de acordo com as tonalidades utilizadas na tela e sabe aproveitar os cenários mais a favor da história.
Embora que tenha grandes méritos, há trechos de Perdida que ficam a desejar, como é o caso dos momentos em que a protagonista começa a ser transportada para outro lugar. As luzes “caindo” em volta da personagem, feitas com CGI, tiram um pouco do glamour da aventura, mas nada que arruine a experiência de quem sabe o porquê está ali. Outro ponto que pode desagradar alguns é o uso de algumas composições da trilha sonora. As músicas escolhidas para os momentos mágicos da trama destoam do tom do projeto. Já em outras sequências, a música funciona perfeitamente como ferramenta de provocação a grandes sentimentos. Há um descompasso que segue Perdida.
PERDIDA
Entre os acertos, Grigio se encaixa perfeitamente no papel de Sofia. No entanto, algumas atuações ficam a desejar e o fato de muitos atores precisarem emular os trejeitos e linguajar do século dezenove não contribui. Outros personagens, como é o caso de Nina, a melhor amiga da protagonista, parecem ter sido colocados na história apenas para justificar algo dos bastidores ou para servir de trampolim na resolução de conflitos. A citar determinado momento no desfecho da trama, em que a relação das ditas melhores amigas se mostra, na verdade, superficial e fraca. Uma decisão é tomada sem que a outra seja, sequer, considerada.
Fruto de um momento importante de avanços sociais, Perdida conquista por ser um conto de fadas moderno com o discurso alinhado a importantes pautas. Mesmo que não se aprofunde em todos os assuntos levantados, há ótimos momentos em que o contraste de épocas soa efetivo para mostrar a evolução da sociedade. O uso da metalinguagem em inúmeros trechos, com direito a referenciais que vão deixar muitos fãs da Disney contentes, é propício para uma aventura que duas vezes teve que se moldar a diferentes linguagens - enquanto Sofia salta da pós-modernidade para séculos atrás, a obra literária de Carina Rissi é transportada para as telonas.
Ainda que não seja um filme para quem não gosta de romances e fantasias, o longa encontra seu lugar entre as experimentações nacionais importantes para abrir portas no presente e, quem sabe, no futuro. A ciência de que o amor é, naturalmente, cafona salva o filme de algumas pretensões. Com seis livros na saga literária, a jornada de Sofia está longe de terminar e, caso continue na sala escura, a denominada Perdida pode finalmente se encontrar através da própria história.