Estrelado por Glen Powell, Assassino por Acaso transita entre o profundo e o superficial maravilhosamente bem
por Rafael FelizardoNão é exagero algum afirmar que Richard Linklater é um dos cineastas mais relevantes da Hollywood moderna. Se, durante as últimas décadas, ele levou às salas títulos profundos que mergulharam o espectador em temáticas complexas (Antes do Amanhecer, Boyhood - Da Infância à Juventude), nem só de drama vive o homem, sendo responsável também por uma bem-vinda cota de comédias - lembra de Escola de Rock e Jovens, Loucos e Rebeldes?
Desta forma, em 2024, Linklater resolveu mais uma vez colocar seu talento à prova, enfiando a mão em um projeto que, inicialmente, não obteve tanto a atenção da mídia. Protagonizado por Glen Powell, Adria Arjona, Retta e Austin Amelio, Assassino por Acaso é o novo longa-metragem do diretor; um filme de personalidade forte, ácido e que não deve nada a nenhum outro já comandado pelo cineasta.
Assassino por Acaso quebra com uma série de expectativas
Baseada vagamente em um caso real, a trama conta a história de Gary Johnson, um homem comum que trabalha como professor de psicologia e filosofia de uma universidade. Sua vida pacata não permite grandes emoções, levando o rapaz a viver em uma eterna zona de conforto. Por conta de seu conhecimento em tecnologia, nas horas vagas, ele também presta serviços para a polícia. Quando um dos agentes é suspenso por conta de um comportamento agressivo, Gary precisa assumir o lugar do companheiro, passando a trabalhar disfarçado como Ron, um perigoso assassino de aluguel. Tudo caminha maravilhosamente bem, mas em um dos casos, nosso protagonista acaba se apaixonando pela bela Madison, uma mulher que sofre com um marido abusivo.
Sem vergonha alguma de assumir, confesso que Assassino por Acaso foi a obra de Linklater que menos tive vontade de conferir. Inicialmente, o enredo me soou genérico, alimentando ainda mais o meu preconceito com seu péssimo nome. Sinceramente, acho Assassino por Acaso um título que remete àqueles filmes de comédia/ação que são transmitidos comumente na TV aberta, mais especificamente em um tedioso domingo à tarde.
Assim, ao terminar de assistir ao longa, precisei admitir que o trabalho do cineasta, aqui, foi de alto nível. Assassino por Acaso definitivamente não é uma comédia nos moldes tradicionais, apoiando-se em um humor áspero e extremamente carismático. O roteiro - co-escrito por Linklater e Powell - é um dos pontos altos da obra, parecendo insosso a princípio, apenas para em seguida montar em uma narrativa inteligente que mantém o espectador entretido a todo o tempo.
Além disso, há uma maravilhosa provocação ao conceito de certo/errado que continua a ser retroalimentada no desenrolar da trama, quebrando com a expectativa do ouvinte por diversas vezes. Se em filmes mais populares comumente temos uma estrutura onde a lição moral aguarda como uma espécie de cume, neste, o público certamente não deve esperar por isso.
Glen Powell e Adria Arjona funcionam perfeitamente bem
“É impressão minha ou o professor está ficando gostoso?” A fala expressada por um dos personagens secundários em torno do segundo ato do filme resume bem o personagem de Glen Powell. Com uma atuação sólida, se a princípio Gary é um homem pacato, por vezes visto como sem graça, aos poucos ele vai se transformando no misterioso Ron - mas nunca por completo. O ponto alto aí é que Linklater consegue fazer com que a mudança ocorra de maneira gradual, ancorada por conceitos da psicanálise que são apresentados no decorrer do enredo.
O mais interessante nessa abordagem psicanalítica é que representações como o aparelho psíquico e outras instâncias são destrinchadas de modo simples, facilitando o entendimento até para o espectador que não é familiarizado com o assunto. A maior parte da metamorfose comportamental de Gary é justificada por seus próprios ensinamentos na universidade, elemento que rende outro “bom trabalho” ao roteiro do cineasta.
A química entre Powell e Adria Arjona também é algo a ser salientado, rendendo momentos quentes sem precisar abusar da vulgaridade. Assim como o astro, Arjona casa perfeitamente bem com sua personagem, uma mulher que mesmo tomando decisões duvidosas por boa parte da trama, consegue cativar o público. No fim das contas, Madison apresenta algumas das características mais realisticamente humanas que uma personagem pode ter em um blockbuster hollywoodiano, e isso ajuda bastante na identificação do espectador com ela.
Tecnicamente, o longa-metragem é sólido e não abre muito espaço para erros
Com uma bonita fotografia assinada por Shane F. Kelly, um flerte com o cinema neo-noir e uma mixagem de áudio competente, Assassino por Acaso sem sombra de dúvida é uma obra tecnicamente sólida. Uma das particularidades mais impressionantes do enredo é como ele sabe exatamente a hora de seguir em frente, não ficando preso a subtramas que poderiam se tornar fatigantes. As variações de gêneros cinematográficos impedem que o público fique confinado a um assunto por muito tempo, tornando a obra um camaleão muito bem montado.
E falando em montagem, o trabalho realizado pela equipe de edição é muito bom, criando um andamento confortável que não se faz perceber as quase duas horas de filme. De fato, havia muitas formas de a produção descarrilar por conta de seu número de subtramas, mas isso não chega nem perto de ocorrer em momento algum.
Leve e ao mesmo tempo profundo, Assassino por Acaso navega no suspense, na comédia e no romance de maneira consistente, dando ao público, em 2024, mais um motivo para retornar aos cinemas. Nos últimos anos, Linklater também trabalhou nos notáveis Apollo 10 e Meio: Uma Aventura Espacial e A Melhor Escolha, mostrando que não perdeu a mão na direção.
E para finalizar - e para não dizer que não tenho nenhuma crítica a fazer -, senti que o cineasta poderia ter retornado com a ex-esposa/melhor amiga de Gary Johnson em outros momentos do enredo para dar ainda mais ênfase à transformação do personagem - mas isso é apenas o desejo de um crítico chato e em nada atrapalha a experiência.