Com quantas reviravoltas se faz um filme?
por Aline PereiraA edição de 2022 do Festival de Cannes foi um prato bem cheio para fãs de filmes de investigação e espionagem: Decision to Leave foi um dos grande destaques e rendeu um troféu de Melhor Direção para Park Chan-Wook, enquanto o egípcio Boy From Heaven veio logo atrás com um merecido prêmio de Melhor Roteiro. Talvez, justamente, a concorrência tenha ofuscado a participação de Hunt, longa sul-coreano estrelado e assinado por Lee Jung-jae, protagonista Round 6, um dos maiores fenômenos da história da Netflix - e que, certamente, trouxe muito desse clima caótico para sua estreia como diretor.
A história de Hunt começa inspirada em acontecimentos reais: no final da década de 1970, o presidente da Coreia do Sul, Park Chung-hee, foi assassinado, acontecimento que estremeceu a política do País pelas circunstâncias misteriosas, difíceis de explicar. Desde então, em um período pós-autoritário, o olhar rigoroso sobre as pessoas que trabalham para o governo parece ter mantido um clima de paranoia silencioso, mas tenso.
Quatro anos após esse assassinato chocante, começamos a acompanhar Park Pyung-ho (Lee Jung-jae) e Kim Jung-do (Jung Woo-Sung), dois agentes governamentais que estão investigando um possível informante infiltrado pela Coreia do Norte, que estaria tentando aproveitar a instabilidade do momento para derrubar o país rival. A partir daí, um jogo de gato-e-rato sem fim toma conta de Hunt - o que torna o filme, ao mesmo tempo, envolvente e muito disperso.
Hunt: um filme sobre reviravoltas
É claro que as surpresas e viradas inesperadas são parte obrigatória da experiência de assistir a qualquer filme de espionagem, mas Hunt, certamente, vai além do esperado - e, às vezes, do desejável, nesse quesito. Não pela complexidade de suas reviravoltas, mas pela quantidade: temos pouquíssimo tempo para nos recuperarmos e assimilarmos a “nova verdade” da história, quando outra mudança de direção derruba tudo e dá início a mais um caminho. Na maior parte das vezes, é verdade, esses giros ajudam a manter o interesse na história, mas, na mesma medida, os excessos podem tirar o público da trama.
Sem o mínimo de tempo para nos situarmos novamente após uma descoberta importante, é bem possível que muita gente se confunda (sem nenhum demérito nisso) e acabe perdendo o fio da meada. Nesse sentido, é como se Hunt fosse uma atração mais para quem já está habituado a filmes de espionagem e que vai deixar os mais “iniciantes” um pouco perdidos.
Mas qualquer “esforço” para continuar acompanhando a saga vale a pena, sim, e Hunt traz diversas camadas dramáticas - dos históricos pessoais de seus personagens às grandes conspirações e esquemas de corrupção internacionais. Algumas das reviravoltas são importantes para entendermos o contexto político, social e econômico em que o filme se passa e revelam muito mais trabalhos e intenções ocultas do que, talvez, poderíamos antecipar logo de cara.
Mas o principal problema de histórias que incluem muitos novos elementos o tempo todo é que elas podem acabar caindo na própria teia de aranha. No fim da história, o que temos é uma longa lista de acontecimentos que não parecem ter muita conexão com a trama principal e que perdem importância. Não vamos dar spoilers, é claro, mas em Hunt isso acontece, por exemplo, com o relacionamento entre o protagonista e uma jovem de quem ele "cuida" - certamente um ponto importantíssimo para entendermos os dois, mas que acaba um pouco jogado em meio a tantos outros elementos.
Filme leva o realismo ao limite (e passa dele)
Quando o filme começa nos contando uma história real e em um tom tão sério, é quase inevitável esperarmos que a história continue mantendo os pés no chão, mas Hunt sai voando em espiral logo em seus primeiros momentos - o que não é um defeito propriamente dito, mas uma quebra de expectativa para quem chega esperando, talvez, por uma trama mais ancorada em elementos realistas e mais sóbrios.
Aqui no filme sul-coreano temos uma trama que não parece se levar tão à sério assim em alguns momentos e que abre mão do enredo pela grandiosidade do absurdo. A sensação é de que esses excessos tornam o filme menos crível e, consequentemente, apagam um pouco do senso de urgência que sempre vai muito bem em histórias de espionagem.
Há muita violência em Hunt. Muita mesmo. Na maior parte das vezes, ela é completamente justificável e assim como na vida real, os assassinatos e torturas são parte intrínseca da história, mas às vezes, passa do ponto. Mais com o objetivo de chocar e “exibir” suas coreografias, a pancadaria do filme não ajuda a movimentar a história e a sensação é de que alguns desses momentos poderiam muito bem ser substituídos por mais diálogos e mais explicações sobre que está, de fato, rolando por ali.
Curiosamente, as cenas de ação são também os pontos mais altos dos filmes pela ótima execução técnica. Tanto a filmagem quanto a movimentação dos atores em cena tornam os momentos de luta e correria os mais imersivos de Hunt - ainda que não estejam tão conectados, como mencionamos antes, à trama principal. O astro de Round 6 se mostrou um bom diretor de ação, com um olhar muito particular para as cenas que exigiam movimentação rápida - os fãs do gênero e o público que se diverte mais com grandes lutas vai se envolver.
Filme sem heróis
Embora seja muito baseado em um momento político histórico da Coreia do Sul, existe algo de universal no conflito, uma ficcionalização muito clara, mas que nos dá também uma noção razoavelmente sólida da complexidade das relações internacionais do país, sobretudo por mostrar os diversos interesses internos e externos que rondam a política do local - e o quanto eles podem mudar de acordo com interesses e, especialmente, perspectivas.
Quando uma história qualquer nos é contada - ainda mais com esta grandiosidade - , é natural tentarmos identificar um lado como o mais “correto”, se é que dá para usar essa palavra, mas Hunt nos desafia a esperar para ver e descobrir que, em determinadas situações, definitivamente, não existem heróis.