Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Garota Negra

Diário de uma empregada africana

por Bruno Carmelo

Depois de procurar emprego por todos os lados, em vão, a senegalesa Diouana (Mbissine Thérèse Diop) é contratada por uma mulher branca para cuidar de seus filhos no sul da França. “Eu consegui emprego com brancos! Consegui emprego com brancos!”, ela grita de felicidade. Diouana imagina a França das lojas, das ruas chiques, das pessoas interessantes. Sonha em comprar um apartamento e fazer viagens. Chegando ao emprego, no entanto, é mantida em regime de escravidão dentro do apartamento, sequer recebendo salário. “A França é o quarto, a sala, a cozinha”, resume.

Garota Negra é uma obra violenta. O diretor senegalês Ousmane Sembene retrata em 1966 a cruel herança colonialista francesa na África, sugerindo que a dominação permanece intacta nos dias hoje. A patroa (Anne-Marie Jelinek), mulher submissa ao marido, demonstra prazer sádico em tratar a empregada como um objeto, um fetiche exótico para colocar ao lado de suas máscaras africanas. Os convidados brancos e ricos da casa falam sobre Dakar, explicam que a situação está muito melhor economicamente, enquanto têm no cômodo ao lado uma senegalesa que poderia muito bem dar seu ponto de vista, mas a quem jamais se pergunta o que quer que seja.

Muito antes de o termo “lugar de fala” ser empregado, o drama retrata a noção de uma minoria cuja história é forjada pelas figuras dominantes. Diouana fala francês, mas não ousa se expressar diante dos patrões, que supõem sua incapacidade de compreender a língua. Isso resulta numa série de ofensas diretas à protagonista. “Como ela entende o que você fala?”, pergunta uma colega da patroa. “Intuitivamente, acho”, responde. “Ah, como um animal!”, expressa a amiga. Sembene consegue extrair críticas ferozes ao orgulho colonialista a partir de elementos muito simples dentro da casa, como uma máscara, os sapatos de Diouana e sua peruca. O cotidiano ganha contornos opressores.

Curiosamente, ouvimos a empregada/babá/cozinheira quase unicamente em voz off. Ela não se expressa de modo direto, talvez por não ter voz, justamente. Em seus pensamentos, como num diário interno, Diouana retrata seu calvário, sua decepção com o país e com as pessoas que desejam controlar o seu corpo – seja a patroa escolhendo as suas roupas ou o pretendente na rua que tenta colocar as mãos em seus seios. Enquanto mulher, negra, africana e pobre, ela está sujeita às mais diversas formas de dominação. Seu monólogo silencioso soa melancólico, mas jamais passivo. Existe uma ânsia de revolta em cada pequena provocação da empregada em relação aos patrões. Enquanto isso, o enquadramento próximo do quadrado reforça a sensação de clausura, e o preto e branco elegante reforça o verniz de luxo e normalidade da escravidão.

Garota Negra se conclui na África, ao invés da França. Sem estragar a bela reviravolta, basta dizer que esta é a oportunidade de o roteiro se vingar, simbolicamente, dos colonizadores. O filme termina ressaltando o equilíbrio precário das relações de poder, entre o furor interno de Diouana e sua aparência permissiva, entre o discurso social inclusivo dos franceses e sua prática desumana, entre a ideia de uma África exótica, na qual as pessoas podem ser compradas, e a realidade vista por um garotinho assustador. Com sua máscara africana cobrindo o rosto, a criança cobra de modo inquisidor a responsabilidade dos patrões e, por extensão, do espectador na sala de cinema.

Filme visto no X Janela Internacional de Cinema do Recife, em novembro de 2017.