Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Silêncio

Sobre martírio e fé

por Lucas Salgado

A religião sempre foi um tema muito importante pessoalmente e profissionalmente para Martin Scorsese. O cultuado diretor já deu inúmeras entrevistas revelando que pensou seriamente em ser padre na sua juventude. Suas obras, mesmo as mais violentas, geralmente contam com personagens com certa dose de religiosidade e tradição. É claro, ele também foi responsável por produções diretamente religiosas, como  A Última Tentação de Cristo e Kundun.

Agora, repete a dose com Silêncio, uma obra sobre fé, perseverança e perseguição. A trama acompanha dois padre jesuítas portugueses, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), que viajam até o Japão para investigar o paradeiro de outro padre, Ferreira (Liam Neeson), numa época em que o catolicismo foi banido do país e em que os fiéis são perseguidos brutalmente.

Com a ajuda do sempre talentoso diretor de fotografia Rodrigo Prieto (O Segredo de Brokeback Mountain e O Lobo de Wall Street), Scorsese criou um de seus mais belos filmes. A cinematografia mescla tomadas suntuosas e cenários incríveis com momentos mais íntimos, geralmente representados em planos-detalhes, focados em elementos específicos, como as mãos dos padres e inúmeras imagens religiosas.

Trata-se de um trabalho impactante, com visual deslumbrante e excelentes atuações, especialmente de Andrew Garfield, que poderia ter sido lembrado por premiações pela performance. Na verdade, isso só não aconteceu pois o ator já estava sendo indicado por outro filme no mesmo ano, no caso Até o Último Homem.

O longa remete diretamente a A Missão, de Roland Joffé, com Robert De Niro, que também trazia a missão jesuíta como tema. A produção de 1986 ficou marcada pela fabulosa trilha sonora de Ennio Morricone. De forma inteligente, tentando mostrar que a voz de seus padres é mais importante do que uma trilha que torne as cenas mais impactantes, Scorsese opta pela quase completa ausência de música. Temos apenas algumas músicas ambientes, que geralmente estão ligadas ao exercício religioso.

Silêncio é mais do que um título ou um voto. É um estado de espírito necessário para se absorver tudo que o filme e seus personagens têm a dizer. São inúmeros os debates religiosos. É interessante ver Garupe reclamando como os camponeses no Japão presam mais por sinais de fé do que pela fé em si, algo que é sintomático em todo debate religioso, até os dias de hoje.

Diferentemente do que faz em A Última Tentação de Cristo, Scorsese deixa o lado mais crítico de lado, mas oferece algumas metáforas religiosas bem interessantes. Temos a presença de figuras claramente inspiradas em Judas e Pedro, especialmente no que diz respeito a sua negação de Cristo. Também é inevitável não comparar Rodrigues com Jesus, seja pelo visual, seja pelo martírio.

Quando se propõe ao debate, Silence (no original) oferece cenas fabulosas e questionadoras, mas sofre um pouco do problema de apresentar o outro lado, no caso os japoneses, como verdadeiros selvagens. Há boas cenas de diálogos entre japoneses e portugueses, mas também há um certo vitimismo na forma como a religião católica é abordada, algo que historicamente é bem problemático.

A obra sofre ainda em seu terço final. Como forma de condensar parte da história, o longa conta com uma narração de uma pessoa que só aparece no fim da história. Passa a clara impressão de que o filme não estava conseguindo dizer o que queria através das sequências e que acabou precisando de uma voz em off para passar passo a passo o que estava acontecendo.

Não tira os méritos do filme, mas não deixa de representar uma falha.