Uma pequena concha e um novo jeito de encarar o mundo
por Diego Souza CarlosQuando a lista de indicados ao Oscar 2023 pipocou nas telas daqueles que ‘adoram cinema’, houve quem cravou os vencedores da edição sem pestanejar. Entre tantos nomes e sonhos concretizados ali, naquela seleção gigantesca onde artistas calejados de Hollywood e estreantes até então desconhecidos se encontravam, estava Marcel, a Concha de Sapatos.
Um dos destaques da categoria de Melhor Animação do ano, com concorrentes igualmente cativantes - Gato de Botas 2, Pinóquio de Guillermo del Toro, A Fera do Mar e Red: Crescer é uma Fera -, o longa passou despercebido principalmente pelo público brasileiro, que só recebeu o filme em abril de 2023, por aluguel ou compra digital. Apesar da pequenez de seu protagonista e até mesmo pela simplicidade da história, assistir ao projeto fará qualquer um lembrar aquele ditado de que é possível encontrar "grandes tesouros em pequenos frascos".
Marcel é uma adorável concha que leva uma vida colorida com sua avó Connie e seu fiapo de estimação, Alan. Antes parte de uma extensa comunidade de conchas, eles agora vivem sozinhos como os únicos sobreviventes de uma misteriosa tragédia. Mas quando um documentarista os descobre entre a desordem de seu Airbnb, o curta-metragem que ele publica online traz a Marcel milhões de fãs apaixonados, bem como perigos sem precedentes e uma nova esperança de encontrar sua família há muito tempo perdida.
O mundo através da pureza de Marcel
Com menos de duas horas de duração, é na simplicidade que Marcel, a Concha de Sapatos brilha e reluz. Acompanhar as primeiras interações entre o protagonista e o cineasta Dean, interpretado pelo diretor do filme, faz o trabalho de apresentar este pequeno-grande universo que é a casa onde Marcel mora.
O fato de ser um falso documentário, ou mocumentário, ao estilo The Office, Abbott Elementary e Modern Family, colabora para que a audiência se conecte com o protagonista através de seus comentários curiosos sobre a vida. Afinal, ele conhece apenas o que vê e o que está ao seu redor, o mundo é um enigma, a forma como ele enxerga as ações humanas é carregada de pureza.
Sob a perspectiva da pequena criatura, uma residência comum se torna um grande planeta abstrato. Aos poucos, descobrimos que a casa já foi alugada inúmeras vezes enquanto ele vivia lá e os últimos moradores, um casal na rota da separação, foram caóticos o suficiente para desmembrar não apenas o relacionamento que viviam, como a família da pequena concha.
Durante o período de solidão que se seguiu após o desaparecimento do restante de sua família, o pequeno ser encontrou meios de estimular a criatividade para sobreviver e até ter certo conforto. “É tudo tão grande e me sinto tão bem”, é uma frase do protagonista que ilustra a forma como ele se sente na imensidão que aprendeu a amar.
Há trechos em que o vemos utilizar ferramentas e apetrechos comuns como grandes engenhocas, e aqui está outro elemento frequente da trama: uma irresistível e estranha comédia. Para conseguir sobreviver, Marcel se vira como pode: transforma bolas de golfe em meios de transporte, mantém uma batedeira conectada à árvore do jardim, responsável por balançar os galhos da laranjeira até que seus frutos fiquem à disposição no gramado, cria catapultas para alcançar lugares altos.
Histórias dentro de histórias
A história de Marcel não começa exatamente em 2021, mas cerca de uma década antes, quando o curta-metragem que apresentou o personagem foi lançado pelo diretor. Fazendo jus à proposta do formato, o registro com pouco mais de três minutos apresenta Marcel e a premissa do que viria a se tornar o seu filme.
Conhecemos esse universo através da interação metalinguística de Dean Fleischer Camp: ali ele é um personagem que faz um documentário, mas ao mesmo tempo, como diretor do filme real, faz o mesmo uso da linguagem que apresenta a história de Marcel. O realizador, inclusive, é responsável não só por atuar, mas também está por trás da produção, do roteiro e da direção do projeto. Em breve, os fãs da Disney poderão ver seu mais novo projeto, o live-action de Lilo & Stitch.
A pessoa responsável pela construção do fofo e curioso Marcel também tem grande responsabilidade no restante do projeto. Trata-se de Jenny Slate, atriz com um extenso trabalho de dublagem. A título de curiosidade, durante algumas entrevistas a artista revelou ter encontrado a característica voz do personagem, a princípio, sem recursos adicionais.
Com créditos em produções como o hit da Netflix Big Mouth e o desenho queridinho da Cartoon Network, Hora de Aventura, ela também pode ser vista em algumas produções live-actions. Seus últimos grandes papéis fora dos estúdios de dublagem encontram o vencedor do Oscar Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo e Venom.
Entre as camadas que propõem termos de metalinguagem para a trama, ainda há o curioso fato de que há uma subtrama de separação entre os personagens humanos do filme. Durante a produção de Marcel, a Concha de Sapatos, Dean e Jenny, antes casados, se divorciaram.
Sobre amadurecer e reconhecer quem somos
Sendo a primeira animação da A24, estúdio responsável por A Baleia, era de se esperar algo diferenciado, que propusesse não apenas o arroz com feijão do padronizado uso da computação gráfica vista na Disney e na Pixar. É com bons olhos que a escolha pelo stop-motion é vista. Por ser um estilo de animação extremamente demorado e procedural, com inúmeras etapas, a decisão de mostrar Marcel através da movimentação típica do formato auxilia na estranha e cativante apresentação do personagem, de suas pequenas descobertas à linguagem proposta pelo cineasta.
Mesmo que seja uma narrativa de um serzinho tão pequeno para as proporções do planeta Terra, há tanto coração na produção que será imensamente difícil não se emocionar com as aventuras da pequena concha de sapatos. A história aborda questões tão antigas quanto qualquer fábula de séculos atrás: a partir de uma ruptura ou um conflito, começa a busca do herói pelo retorno à normalidade, mas o destino final o leva a descobrir algo sobre si mesmo. Na típica jornada do herói, Marcel amadurece, muda e se descobre no meio do caos.
A doçura dentro de toda a narrativa não se deixa influenciar em momento algum pelos problemas contemporâneos, por mais que eles existam e aumentem gradualmente de acordo com o andar da história. Em determinado momento, quando o vídeo de Marcel procurando por pistas sobre sua família viraliza nas redes sociais, há uma interessante conexão com a forma como as pessoas se relacionam com a internet. Sob o olhar inocente da pequena concha, há medo do que essa fama inesperada significa. Pessoas começam a surgir na frente de sua casa, surgem tentativas de invasão, um crescente pânico se instala e, para a inquietação do personagem, a mensagem principal de seu vídeo não é atendida.
É neste ponto em que Dean não apenas mostra um olhar externo sobre nós mesmos, mas também como esse relacionamento pautado pelas redes sociais pode ser doentio. As pessoas não enxergam mais o que está a frente, contanto que seja uma forma de ter engajamento, entrar numa trend, ganhar likes. Em um filme cheio de doçura e ondas de melancolia, esse é um dos momentos ácidos da narrativa. A câmera se volta a um público possivelmente ruborizado pela identificação. Não se trata apenas de se encantar com a pureza do protagonista, mas também entender quando a sensibilidade das pessoas se perdeu.
Apesar de ser uma charmosa história, é válido citar que Marcel, a Concha de Sapatos pode não ser um filme para todos. Em meio a tantos blockbusters e filmes tomados por efeitos especiais, explosões, batalhas espaciais e carros dez vezes mais velozes e furiosos que 20 anos atrás, o filme se mostra de forma branda, singela, com passagens pausadas e contemplativas. Isso não significa, no entanto, que não tenha um bom ritmo.
Ao fim, trata-se de uma experiência convidativa para todos. Ainda mais quando uma pequena e fofa concha promove reflexões sem deixar o sorriso de lado, sem perder o humor. Além de nos lembrar que “tamanho não é documento”, Marcel reconhece que, provavelmente, temos o que é preciso para enfrentar mudanças e ressignificar espaços e relações.