Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
Oppenheimer

Já podemos esquecer Tenet?

por Aline Pereira

“Este é um filme sobre consequências”. Foi assim que Christopher Nolan definiu Oppenheimer em entrevista ao AdoroCinema. O diretor não poderia ter condensado melhor a sensação de assistir à história do físico J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy), uma das pessoas mais importantes que já viveram (também palavras do cineasta), cuja invenção – a bomba atômica – marca um dos momentos mais terríveis da história da humanidade. Com atuações dramáticas e apostando em uma lente muito próxima do mundo real, o drama pressiona seu público a sentir o peso do horror. 

Três anos após o lançamento conturbado de Tenet, Christopher Nolan retorna aos cinemas com o que parece ser o filme mais “sóbrio” de sua carreira – e isso é bom. Sem grandes distorções de tempo e espaço (embora elas ainda estejam lá), o cineasta aplica sua notável habilidade na criação de espetáculos visuais para nos colocar sobre os ombros de seu protagonista e lidar, junto a ele, com um dilema de dimensões inimagináveis e catastróficas.

Baseado no premiado livro American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer, o filme nos leva para a vida do cientista norte-americano que carregou o título (e o fardo) de “pai da bomba atômica”. O físico foi diretor do laboratório de testes de Los Alamos durante o Projeto Manhattan com a missão nefasta de construir as primeiras bombas atômicas. Ao lado de outros cientistas, militares e autoridades políticas, Oppenheimer liderou o processo que levou ao extermínio de milhares de pessoas nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em 1945.

O maior dilema da história

Uma vez que já sabemos como essa história termina, o grande trunfo de Oppenheimer é nos levar aos detalhes mais morais e éticos desse acontecimento: para o físico, o desenvolvimento da bomba parte da ideia de frear conflitos posteriores, mas não demora até que um grande fato fique evidente: parece não haver genialidade que supere interesses políticos. O conhecimento científico de Oppenheimer se transforma, rapidamente, em uma exibição de poder que, até hoje, se tirarmos alguns minutos para refletir, é assustadora. É nesse sentido que o longa nos traz a sensação alarmante de que a história pode se repetir, especialmente quando é esquecida.

Ao mesmo tempo em que acompanhamos o desenvolvimento do Projeto Manhattan, há também uma outra linha do tempo, alguns anos à frente que é encabeçada, principalmente, pelo personagem (em uma atuação excepcional) de Robert Downey Jr., o empresário e oficial naval Lewis Strauss, fundador da Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos – e talvez o grande inimigo de Oppenheimer.

Avesso ao cientista por diversas razões (muitas delas, bastante pessoais, vale notar), Lewis Strauss foi o líder do comitê que retiraria as credenciais científicas de Oppenheimer e entrou em uma verdadeira caça às bruxas com o objetivo de “expor” o físico como espião comunista, sob a desconfiança de que ele estava repassando informações dos Estados Unidos à União Soviética. O efeito da investigação somado à criação da bomba em si transforma o protagonista em uma pessoa completamente diferente do que vimos nos primeiros momentos do filme e fica clara a complexidade de sua história.

A experiência visual de Oppenheimer é um evento

A alternância na passagem do tempo é uma característica comum às obras de Christopher Nolan, mas em Oppenheimer a mecânica funciona de forma diferente – estamos assistindo à uma história biográfica afinal de contas. Há uma separação visual aqui: as cenas coloridas nos dão a perspectiva do próprio Oppenheimer, enquanto as cenas em preto e branco funcionam mais como uma “documentação” dos acontecimentos. O cineasta contou que escreveu o roteiro em primeira pessoa e, associada à grandiosidade visual, a técnica traz resultados.

Estamos dentro da mente de Oppenheimer. E é um lugar bem indigesto para se habitar, mas difícil de querer sair – o fascínio do diretor por seu protagonista também fica claro e o torna uma figura instigante também para quem o assiste.

Antes do lançamento do filme, muito do marketing e das expectativas tiveram um alvo definido: Christopher Nolan explodiu uma bomba sem usar efeitos gráficos. Era tudo de verdade, feito em frente às câmeras. Não é difícil imaginar a justificativa por trás da escolha: tornar o efeito o mais realista e impressionante possível. Deu certo e o filme cumpriu a promessa de transformar uma cena de ação em uma grande obra de drama – mas gostaria de destacar: não é por causa da bomba.

Embora, é claro, a explosão seja de encher os olhos, é a tensão que precede o momento o que realmente torna Oppenheimer um grande filme. A preparação do Teste Trinity (o primeiro com uma arma nuclear na história) reúne o que há de mais valioso no longa: as grandes atuações do elenco e a sensibilidade de não tornar esse acontecimento um espetáculo vazio, mas uma sensação terrível, trágica e real de fim dos tempos.

Se em Tenet, senti falta da forma trabalhando a favor da história, em Oppenheimer, há uma combinação harmônica entre narrativa e estética, passando por um grande trabalho de som. Ainda que o cineasta continue circulando demais em volta do próprio estilo, o filme de 2023 não nos deixa com a sensação de presunção, mas de cuidado aos detalhes.

Grande elenco, deslize nos personagens

Oppenheimer marca a sexta vez em que Cillian Murphy trabalha com o diretor e é seu primeiro papel principal em um filme de Nolan - e a verdade é que eles parecem ter sido feitos um para o outro. Nem tão frio e calculista no longa, o astro de Peaky Blinders, sem dúvidas, tem um divisor de águas em sua carreira agora: especialmente quando comparamos a atuação em dois momentos distintos da vida do cientista, é notável a habilidade de Murphy para se expressar de maneira forte, convicta e sutil ao mesmo tempo. Ele entendeu, abraçou o papel e sabe o que está fazendo.

O quesito “personagens”, por outro lado, talvez seja a principal frustração em Oppenheimer, especificamente se olharmos para Jean Tatlock (Florence Pugh) e Kitty Oppenheimer (Emily Blunt), dois relacionamentos românticos que tiveram um peso MUITO maior na vida do cientista do que o filme deixa subentendido. Enquanto Tatlock foi uma grande força política na vida de Oppenheimer, a esposa Kitty foi o alicerce que estimulou seus feitos.

Mais do que isso, as duas mulheres eram figuras muito complexas, inteligentes e potentes individualmente e mereciam mais espaço. Digo isso mesmo considerando que, claro, o filme não é sobre elas, mas como presenças fundamentais na vida do protagonista (assim como o militar Leslie Groves, interpretado por Matt Damon, muito melhor explorado) – a sensação é de que a participação de duas atrizes talentosas foi desperdiçada.

Durante suas três horas de duração e uma avanlanche de diálogos nem sempre fáceis de entender, a produção também nos leva a uma questão crucial: quem é o responsável pela tragédia? Quem dá uma resposta (cheia de margem para questionamentos) é o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman (Gary Oldman) em cena com o cientista: “ninguém se importa com quem criou a bomba, só com quem mandou jogar”. O sangue está nas mãos de quem? Talvez seja este o legado de Oppenheimer – do homem e do filme.